Em fase de botar as resenhas das leituras de 2011 em dia…
Um livro-reportagem para ler como a um romance
O livreiro de Cabul é um livro-reportagem narrado por uma hábil escritora. Não se trata meramente de mais “um olhar humanizado sobre a matéria”, máxima que muitos jornalistas escutam nas redações na hora de contar aos seus leitores os dramas humanos. A obra de Asne Seierstad vai além do jornalismo literário convencional. É pura literatura, romântica e não piegas, com pinceladas de bom jornalismo.
O livro remete às crônicas de viagem do século XIX, pois traz seu quinhão de pitoresco e exótico na narrativa do cotidiano de uma família afegã, mas sem cair na esteriotipação que nasce dos preconceitos. Asne é uma estrangeira em meio a uma cultura mal-compreendida e estranha ao ocidente, por isso o encanto e a surpresa do olhar forasteiro estão lá, mas ela se permite viver a rotina de seus anfitriões e olhá-los com o máximo de isenção, sem contudo perder o calor da tão buscada “humanização da notícia”.
Tanto cuidado não impediu no entanto, que a família que serviu de modelo para a obra de Asne, processasse a escritora e pedisse compensações financeiras por “transtornos causados devido às revelações feitas na obra”. O resultado do julgamento foi a oferta da doação de uma parte dos direitos autorais para uma fundação que visa promover a literatura afegã, sugestão da própria autora.
No livro, o personagem principal, Sultan Khan, é inspirado em um livreiro de carne e osso, que enfrentou poucas e boas para garantir o funcionamento de suas livrarias durante o governo instituído pelo talibã. Embora tivesse um comportamento liberal e progressista na área da cultura, Sultan Khan dirigia a família com mão de ferro, seguindo os preceitos da sua religião, o Islã, e da sua cultura, a afegã, no trato com as esposas e os filhos.
Sem fazer concessões, mas tampouco tecer juízos de valor, a autora não esconde a admiração que aprendeu a sentir pelo patriarca do clã que a hospeda na tumultuada Cabul de muitas guerras civis e invasões. Mesmo admitindo que algumas ações de seu anfitrião são condenáveis sob o ponto de vista da sociedade na qual foi educada, a ocidental, Asne não deixa de mostrar um outro ponto de observação pelo qual o leitor pode tecer suas próprias considerações.
A escritora parece compreender com bastante clareza o fato dos seres humanos serem luz e sombra ao mesmo tempo. Mais que isso, boa parte das ações humanas se origina na zona cinzenta que faz o ponto de intersecção entre a luz e a sombra. Pena que a família do livreiro não gostou do resultado, ou se arrependeu de deixar alguém devassar sua intimidade, o que também é compreensível.
Sem esconder a opressão vivida pelas mulheres afegãs durante o governo do talibã, tema largamente explorado na literatura e amplamente mostrado na mídia, ela investe em esmiuçar outro ângulo da mesma questão, revelando que as relações de gênero no Afeganistão são bem mais complexas do que sonha a vã filosofia maniqueísta da cultura ocidental. Os homens de lá também vivem oprimidos, tanto por regimes que cerceiam as liberdades civis, quanto pelo peso da tradição cultural.
O livreiro de Cabul não chega a ter a qualidade literária e documental do primoroso Enterrem-me em pé, obra de Isabel Fonseca sobre os ciganos do leste europeu, mas ainda assim é uma excelente leitura tanto para quem admira uma história bem contada, quanto para os que defendem um jornalismo bem feito, isento, mas nem por isso destituído de inteligência e… humanidade.
Ficha Técnica:
Autora: Asne Seierstad
Tradução: Grete Skevik
Editora: Record
316 páginas
R$ 29,90
Li esse livro faz uns anos e adorei!! Foi a partir dele que tive interesse por vários livros igualmente interessantes que li depois.
Bela resenha =]
é realmente uma leitura fascinante. mereci-a há algumas semanas atrás em meio aos meus devaneios hospitalares (estão já se tornando tão frequentes que começam a ficar chatos). Preciso agora ler “Enterrem-me em pé”. Grato pela recomendação.
Pois é amigo Caco, você em devaneios hospitalares e eu convalescendo da quinta cirurgia no olho direito por causa de meu companheiro inseparável Steven Johnson. E vamos em frente! Tenho certeza de que vai gostar de Enterrem-me em pé. Bjos e melhoras!
Sua resenha realmente ficou maravilhosa. É muito estigante, principalmente para leitores como eu que já pretendia ler essa obra. Temas como esse são interessantes e apesar de basearem-se em uma cultura local em conflito, apontam sentimentos humanos, portanto globais que transcendem o idioma, cultura e religião. O homem é oprimido, é opressor e experimenta sentimentos diversos no decorrer da vida. A cultura islã é retratada como rígida e obscura, livros como esse nos proporciona olhar sob um novo patamar: o de serem seres humanos.
Até mais…
Oi Daiane, boa leitura então e depois me conta o que achou :) bjos
Belo blog!
Cumprimentos cinéfilos
O Falcão Maltês