Jô une a fome com a vontade de comer
Só um gordo para descrever com tanta propriedade as agruras pelas quais passam aqueles de silhueta avantajada. Seja pela culpa que acompanha cada mordida ou pelas cobranças da sociedade que confina a beleza em exíguos manequins 36. Jô Soares, que sempre soube tirar partido dos quilos a mais com graça e grande leveza (sem trocadilho) brinda seus leitores, gordos ou magros, com mais uma comédia deliciosa, dessas de ler com o maxilar doendo de tanto rir. O livro As esganadas (Companhia das Letras) mal saiu da primeira fornada e a pergunta que não quer calar é: o que ele vai aprontar no próximo?
A leitura de As esganadas me lembrou outra deliciosa tragicomédia gastronômica, O Clube dos Anjos, de Luis Fernando Veríssimo, moço igualmente rechonchudo nas formas. Não à toa, Veríssimo escreve uma apresentação de As esganadas que só atiça a vontade de engolir o livro de uma só bocada, bem no estilo voraz dos gordos, nham nham …
No seu novo thriller, Jô ambienta a narrativa em 1938, durante o Estado Novo, e misturando personagens históricos com outros saídos da sua criativa lavra, nos conta sobre um serial killer que muito me lembra o soturno Nosferatu, de Murnau, mas tem métodos de ação inspirados no famigerado Jack – O Estripador. O assassino, que logo no primeiro capítulo é revelado, tornando o leitor um cúmplice involuntário de suas macabras motivações, escolhe como vítimas as formosas mocinhas da sociedade carioca, todas tamanho GG. É um serial killer de gordas aficionado na imagem da própria mãe e nos pratos típicos portugueses que ela cozinhava. Qualquer semelhança com Norman Bates, de Psicose, não é mera coincidência. Jô bebe na fonte de Hitchcock, em grandes goles, amém!
Com o assassino devidamente conhecido em detalhes sórdidos e anatômicos desde as primeiras páginas, resta ao leitor rir até não mais poder das trapalhadas da polícia carioca em busca do facínora. Ao contrário de O Xangô de Baker Street, em que há um mistério sherlokiano a ser desvendado e cada pista leva o leitor a avançar nas investigações junto com a dupla Holmes e Watson, devidamente transmigrada da terra da rainha para o Rio de Janeiro do segundo império; aqui, a ideia é que cada dedução que resvala a verdade sirva para frustrar. O leitor sabe quem está matando as gordas e não consegue entender, ou parar de achar graça, o fato da polícia se enrolar toda no caso. A vontade é fazer como as avós diante da novela das oito e berrar para o livro: “olha aí, não tá vendo que é ele o vilão?!”
O grande mistério, e não seria um thriller se não houvesse um, é descobrir o que tanto as gordas vitimadas pelo serial killer faziam num determinado endereço do Beco dos Barbeiros. Calma, caçadores de spoiler, não vou contar!
Personagens – As tiradas inteligentíssimas de Jô Soares temperam a trama, que ainda encontra espaço para traçar um panorama irônico dos protagonistas do Estado Novo. Sem panfletar, o autor expõe o ridículo dos cerimoniais que cercavam os ditadores do período e seus asseclas. E não esquece os detalhes pitorescos do namorico de Gegê com o nazismo.
O manjar fino de As esganadas é servido ainda por seus personagens fictícios. A trupe responsável pela investigação dos crimes é impagável. Como não cair de amores pelo detetive português Tobias Esteves, Sherlock de além-mar? Ou pelo policial Calixto, malandro por vocação? Até o ranzinza delegado Noronha, apesar da chatice, conquista o carinho da audiência.
Só do assassino é que é difícil gostar. Tampouco sentir piedade, apesar do drama edipiano que o cerca. Jô constrói o desalmado serial killer com tudo que há de mais grotesco e repulsivo na literatura e cria um tipo daqueles que assombram os pesadelos. E para coroar a obra-prima, ainda batiza o infeliz de Caronte. Piada pronta, com toda certeza, mas nem por isso deixa de ter sua graça.
Ao final das pouco mais de 250 páginas, num timing perfeito para a piada não perder o efeito, o leitor percebe que devorou As esganadas de ironia em ironia, lambendo os dedos e os beiços. Como bem lembra Veríssimo na sua apresentação, arranje uma merenda para o final, porque você irá ficar numa fome insaciável.
Ficha Técnica:
Autor: Jô Soares
Editora: Companhia das Letras
264 páginas / R$ 26,00 em média
Por favooooooooooor esse livro tem que virar filme,é maravilhoso,envolvente ,acabei ele num dia só rs
Acho que devia seguir o mesmo caminho de O Xangô de Baker Street, que virou um filme divertido baseado em romance homônimo de Jô.
abs
Olá Andréia: Li as Esganadas hoje e vim ver o parecer de outras pessoas. Achei sua resenha muito parecida com o que achei do livro. Divertido, inteligente e cultural. Tudo de bom.
Renata
Menina, com certeza o nome Caronte para o dono da melhor funerária da cidade, é realmente piada pronta. E o nome da funerária é Estige, o rio que o barqueiro conduzia os mortos rsrs.
Eu apenas comecei a ler o livro, mas de cara essas informações já me encheram os olhos, afinal, sou louca-alucinada-desvairada por mitologia grega.
Meus parabéns pela resenha: à altura do livro do brilhante Jô Soares. Ele é brilhante em tudo, incrível.
Achei ótimo saber que você é de Salvador, minha conterrânea. Eu sou escritora independete, e espero que possa conhecer o meu trabalho.
http://imperiodosdeuses.blogspot.com/
Caso você também seja escritora, e independente, gostaria que me procurasse para contar-lhe sobre um projeto.
De antemão, foi um prazer. A gente vê tanta “resenha-lugar-comum” na internet… a sua tem propriedade, qualidade.
Obrigada.
um beijo,
Sarah Micucci – sarah.micucci@hotmail.com
Adorei sua resenha, muito boa mesmo, ainda mais permeadas por essas 3 imagens de Botero, ficou genial. Acabei de ler o livro hoje, e a resenha foi um bom complemento para a leitura. Parabéns.
Obrigada, Jefferson. O livro de Jô é um deleite, espero que tenha gostado. Abraços
Maravilha Andreia! Muito boa a resenha. Vou voltar aqui mais vezes.. Obrigada por compartilhar conosco suas leituras.
Abraços!
Oi Silvana,
Eu que agradeço as visitas. Abraços
Querendo ler. Os dois primeiros de Jô são muito bons, principalmente o segundo, o da morte de Getúlio Vargas. Eu lia quase em convulsão de risos. O terceiro, o do assassinato na academia de letras, eu já não gostei tanto, talvez por isso fiquei meio ressabiado com o novo. O preço, aliás, já aumentou na Saraiva: comprei para dar de presente por 36$.
E aproveitando que falastes de Veríssimo, já leu “Os Espiões”? Moça, pode ler que é do balacobaco.
Abs
Ainda não li Assassinatos na Academia Brasileira de Letras, mas o Xangô de Baker Street e O homem que matou Getúlio Vargas são muito bons, divertidíssimos, Davi. Obrigada pela dica do livro de Veríssimo, esse ainda não li. Bjos
Olá Andreia, já de volta? Que bom!!!
Sua resenha está ótima, como sempre. A arte de falar do livro, sem matar a surpresa. Ler seus textos é uma ótima forma de aprender a fazer os meus. Estou doida pra ler As esganadas, mas vai pra lista de aquisições pq tenho uma fila pra dar conta e estou na Rehab de compras! rs.
P.S: Levei um sustinho bom quando vi o link para o “Dignidade não cabe aqui” ali do lado! Obrigada!
Bjão!
Oi Nayara,
A recuperação está indo bem e o médico liberou o uso moderado de computador, rsrsrs, eu já tava em crise de abstinência que nenhuma rehab daria jeito :) Li o livro em menos de 12 horas, é dos tais de não largar e adoro as obras de Jô. Claro que o Dignidade está no blogroll, a qualidade do blog merece destaque! Beijos e obrigada pelas visitas frequentes.