“O advogado Frank Tull era um homem de muitas partes artificiais. Seus dentes haviam sido feitos sob medida e ajustados à arcada-dentária por um cirurgião-dentista. Seus olhos, fracos e imprestáveis, viam o mundo através de lentes bifocais, tão distorcidas que só através delas a distorção dos próprios olhos de Frank era capaz de perceber as coisas direito. Frank tinha na cabeça uma placa de platina para proteger um buraco por onde havia sido removido um tumor cerebral. Uma das suas pernas era feita de fibra e metal; substituía a de carne e osso, que a mãe lhe dera no ventre. Sua barriga era envolvida por um aparelho que se ajustava como uma boca sobre uma hérnia dupla e impedia que as entranhas saíssem do lugar. Um suspensório evitava que o escroto balançasse indevidamente. No braço esquerdo, um arame de platina ocupava o lugar do úmero. De duas em duas semanas ele ía à clínica, onde lhe injetavam alguma coisa com salvarsan ou mercúrio, dependendo da dose da antepenúltima semana, para evitar que os Spirochaeta pallida exercessem influência excessiva sobre sua alma. Às vezes submetia-se a massagens na próstata e a lavagens intestinais para por em ordem outro defeito crônico de sua maquinaria. De vez em quando, para manter seu pulmão sadio em funcionamento, achatavam o outro com gás. Num dos ouvidos ele prendia um dispositivo destinado a tornar audíveis sons comuns. No sapato esquerdo, um suporte em arco evitava que o pé chato dificultasse o seu caminhar. Uma peruca cobria a placa de platina em sua cabeça. Suas amígdalas tinham sido extraídas, bem como o apêndice e as adenoides. De sua vesícula haviam sido removidas pedras e um câncer fora cauterizado em seu nariz. Ele havia sido operado de hemorroidas; de seu joelho fora drenado água. Às vezes submetiam-no a clisteres, e lhe abriam um buraco no pescoço para que ele pudesse respirar quando suas narinas se obstruíam. Carregava a cabeça num arco de aro, pois havia quebrado o pescoço; quase sempre tinha as unhas do pé encravadas. Como membro da mais perfeita espécie que a vida já produzira, Frank Tull não era capaz de tirar seu sustento das plantas do campo, nem conseguiria competir com as bestas irracionais que ali habitavam. Como membro da sociedade em que nascera, era respeitado, bem cuidado e continuava a viver, sobrevivendo, sem dúvida, por ser apto. Era marido, mas não pai; casado, mas não amante. Cem anos depois que morreu abriram seu caixão. Tudo quando encontraram foram arames e fios.”
(Charles G. Finney, O circo do Dr. Lao, pp 91 e 92. Ed. LeYa, São Paulo – SP, 2011)
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Curioso, não conhecia… No meu blog, comentei um conto de Jaroslav Hasek, a Alfândega Austríaca, sobre um sujeito que é reconstituído após ser atropelado por um trem e não consegue voltar para casa por causa dos materiais que passou a “possuir”. Abraços, Fabio
Oi Fábio, esse livro não fala necessariamente sobre cyborgs, mas a descrição desse personagem me lembrou um. O livro inspirou o filme as sete faces do dr. lao, de 1964, direção de george pal. Narra a chegada de um circo de horrores à cidadezinha de Abalone – Arizona. Esse personagem, Frank Tull, é um dos moradores da cidade. O filme é um dos meus favoritos, mas só agora tive a oportunidade de ler a obra que o inspira, escrita por George G. Finney, um dos pais da literatura gótica, em 1935. Abs!