Os pagodeiros baianos se conformaram com o lugar legado ao negro pela colonização de ideologia branca, machista, racista e dominante: o corpo. Embora, para defender sua arte, apregoem que as letras pejorativas e depreciativas, sobretudo da figura feminina, servem como protesto da periferia, como uma ação libertária dos expatriados, uma ode à putaria no reino ascético da cultura de elite, lamento informar que não é nada disso. Não existe nada de revolucionário aí, nem nas letras que mandam as mulheres latirem e ralarem isso e aquilo, ou isso naquilo; e nem no comportamento das próprias mulheres que se submetem e encenam uma distorção grotesca da própria libido. Trata-se apenas de resignação, de aceitar jogar o jogo que desde os tempos do tráfico negreiro reduziu homens e mulheres de pele negra ao corpo e às genitálias. O corpo de trabalhar duro, pingando suor, nos canaviais e cafezais; o corpo de emprenhar em série (as fazendas tinham negros reprodutores, igual a gado) e gerar mais escravos. O corpo de suprir a lascívia do senhor e o masoquismo da senhora (vide Casa Grande & Senzala).
E nada disso dito acima é novidade para os integrantes dos movimentos negros, das entidades feministas (brancas ou negras) ou para os intelectuais, também de qualquer cor, que se deram ao trabalho de ler Franz Fanon ou bell hooks, ou centenas de outros autores que estudam as marcas da escravidão e do colonialismo, que teorizaram a diáspora africana e suas conseqüências. Aliás, são esses dois estudiosos (bell e Fanon) que formataram essa teoria da redução do negro ao corpo, ao estágio puramente animal e instintivo, que, no parágrafo acima, apenas adaptei à realidade baiana. bell hooks, no caso, por ser norte-americana e negra, estuda o rap e o hip hop, citados inclusive, em reportagem que li neste domingo na revista Muito, por um pagodeiro baiano, na tentativa de defender o caráter rebelde de letras como “perereca pisca pisca” e outras correlatas.
Sim, o rap e a cultura hip hop norte-americana são sexistas e misóginas, outra verdade mais que conhecida, basta um tiquinho de atenção às letras, tal qual o nosso “pagode libertário”. E há décadas pesquisadores como bell se debruçam sobre esse gênero que, embora seja panfletário e símbolo de resistência por um lado, por outro apenas reproduz a catequese secular aprendida dos senhores brancos: homens e mulheres negros são objetos de deleite, de gozo, de prazer sexual ilimitado. E só. Estão confinados a isso. Impedidos por todo um sistema intrincado que vende ilusão de liberdade, a ser mais que um pedaço de carne. O turismo sexual está aí para provar que não se trata de viagem de intelectual trancado na torre de marfim. É uma pena que o conhecimento, o ato de saber, seja vítima de tanto preconceito gerado pela desinformação reinante, pelo culto à mediocridade e ao entorpecimento, do contrário, nem seria necessário escrever esse post.
Financiamento – A reportagem que li, muito bem escrita pela repórter Tatiane Mendonça, do Grupo A TARDE, falava sobre a polêmica lei criada por uma deputada, que está para ser votada este mês na Assembleia Legislativa da Bahia. A dita proposta de lei sugere que o dinheiro público não seja usado para financiar bandas ou compositores de pagode que façam letras ou cantem músicas que depreciem a figura feminina. Um movimento se formou em todas as esferas, principalmente entre os pagodeiros, acusando a lei de racista e de trazer de volta o pior fantasma da cultura brasileira, a censura. Pronto, falou em censura, ainda com os ecos da Ditadura de 1964 ecoando nos ouvidos, meia dúzia de artistas e não sei mais quem se levantaram para berrar que a lei é absurda, embora, como dito na reportagem da Muito, faça sentido dentro dos mecanismos criados para proteção das mulheres; ou seja, dentro do contexto da Secretaria das Mulheres, da lei Maria da Penha contra a violência doméstica e etc.
Acredito que essa lei não seja perfeita, nenhuma é. E que o risco de ser distorcida e mal-empregada existe; assim como em todas as demais adotadas no país, infelizmente. A intenção é, em tese, sempre boa, mas a aplicação passa por tantos meandros que algo se perde no caminho. Só que, o que me deixa espantada é que a questão real ninguém discute. Sob o véu do “é censura, é censura!” faz-se campanha contra a tal lei e deixa-se de discutir o machismo – e o racismo – não por trás da tal lei, mas das letras que só reforçam os velhos estereótipos de sempre. Mantendo a periferia no seu “devido lugar”.
E esses estereótipos que são adotados como verdade máxima por homens e mulheres não reduzem apenas as mulheres ao corpo, ao sexo e a falta de cérebro e discernimento; reduz também os homens. Embora a vítima maior seja a figura feminina, os homens também são confinados ao exíguo espaço de amantes insaciáveis, reis da baixaria, cafetões. Pensam com a cabeça de baixo e só. Assim, ficam mais dóceis, entorpecidos, menos críticos e incapazes de mudar o status quo. Se voltam contra suas mulheres, seja com violência verbal ou física, seja apontando-lhes o dedo e separando-as em categorias, oferecendo tratamentos diferenciados para a “periguete” e a própria mãe (o termo mãe aqui como sinônimo de “mulher de respeito”). E enquanto isso, em Brasília, a corrupção deita e rola e a opressão sobre as camadas mais pobres aumenta. Ou alguém vai dizer que falta de acesso à educação, saúde e oportunidade de ascensão não é opressão?
Concordo que a lei não devia se limitar só aos pagodes humilhantes. Pessoalmente, não gostaria de ver o dinheiro dos meus impostos indo parar no bolso nem dos pagodeiros que me reduzem, enquanto mulher de qualquer cor de pele, a um pedaço de carne; quanto também não queria ver meu suado dinheirinho indo esbarrar em contas fantasma nas ilhas Caymã ou na Suíça, nos famigerados caixas 2, no bolso dos artistas de axé que também reforçam estereótipos, na mão de roqueiros, ou funkeiros, misóginos, na conta bancária dos grupos culturais que são “brodinhos” do governo, enquanto outros morrem à míngua, na mão de partidos pseudo fascistas que tentam reimplantar discursos de intolerância contra a diversidade sexual, religiosa, de pensamento…
Corpo das brancas – Fiz a opção de conduzir essas minhas reflexões pela seara do racismo e dos ecos da escravidão, falando da questão da redução do negro ao corpo, porque me entristece ver toda uma nova geração, seja de compositores, cantores ou consumidores dessas letras de pagode, resgatando justamente os valores distorcidos que seus antepassados morreram tentando combater. Mas a questão da redução da mulher ao corpo é antiga e independe da cor da pele. A mesma cultura branca, dominante, machista e racista que espalhou os horrores da escravidão negra pelos quatro cantos do mundo, é responsável pelo confinamento das mulheres brancas a ignorância e a alcova. Do contrário, não teria sido necessário lutar pelo direito ao voto, pelo direito aos estudos, pelo direito até a usar uma minissaia sem ser molestada. A violência atinge as mulheres de qualquer cor, ou as índias encontradas nessa terra quando da chegada dos primeiros colonizadores teriam sido tratadas a pão de ló. No entanto, foram estupradas e subjugadas tanto quanto as escravas africanas. O mesmo senhor de engenho que usava e abusava da negra ou da índia, também batia na esposa branca se ela não andasse na linha finíssima que a igreja e a cultura traçavam para ela. A diferença é que, graças ao racismo, essa senhora branca descontava na escrava negra. E as letras de pagode, ou de qualquer outro gênero musical que ofenda, diminua, humilhe e reduza a sexualidade feminina a um espetáculo bizarro, atingem todas as mulheres, todos os corpos femininos, de toda cor.
Uma vez escrevi uma reportagem sobre a mulher na música e peguei letras de Noel, de Mário Lago (“Amélia é que era mulher de verdade”) e de diversos outros autores considerados geniais, mestres e clássicos do cancioneiro nacional, mas que não deixaram de ser cronistas de seu tempo e da cultura onde nasceram; mostrando como todo um imaginário sobre o feminino vem sendo construído há décadas e nem sempre de forma respeitosa. E mesmo nos boleros e sambas canção em que homens choram a traição, eles são sempre as vítimas, enquanto a mulher é a pérfida, a Eva tentada pela serpente, que por sua vez desencaminhou Adão!
Mudou o cenário da cultura, de um machismo que se contentava em manter a mulher em casa, presa ao fogão e ao tanque, levando bordoadas do marido noite sim, noite não; para uma sociedade em que a própria mídia vende a ilusão de que as mulheres são livres para exercer seu potencial intelectual e sua sexualidade. As bordoadas, no entanto, permanecem. Como livres, tendo de se esforçar três vezes mais que os homens para conquistar o mesmo salário ou o mesmo respeito do mercado? Sendo chamadas de cachorras e vadias, ou tratadas como lanchinho fácil e peguetes, apenas porque querem ter o direito de escolha tanto dos parceiros quanto do tipo de comportamento sexual que vão adotar? Cadê essa liberdade se desde novas somos educadas para adotar um certo tipo de comportamento para não sermos tachadas disso e daquilo? Como eu disse aqui mesmo, dia desses, uma rede sinistra se fecha sobre as mulheres e, distraídas com a ilusão de que são a Diana Prince da contemporaneidade, boa parte delas ainda não se deu conta…
Queria muito resumir em poucas palavras para opinar referente a este texto , mas logo vi que nao tem como , pois tudo aquilo que penso é muito para tão poucas linhas que vou escrever.
Eu vejo diariamente o machismo imperando em todos os setores da sociedade , é uma pena que sao poucas que se dao conta disto , pois é muito sutil no cotidiano ; e na midia é escancarado basta ligar a televisao e ter a sensibilidade para vereficar que nós mulheres somos humilhadas diariamente em certos programas de tv, eu acho lamentável isto e me sinto de mãos atadas sem ter muito o que fazer, mas a minha contribuição para acabar com isto tudo é mudando todos os habitos dentro da minha casa e trabalho, sendo assim estaremos contribuindo para um mundo bem melhor.
ABRAÇOS A TODOS AQUELES QUE NAO ACEITAM QUALQUER TIPO DE DISCRIMINAÇÃO,
E SE VCS NÃO PODEM MUDAR O MUNDO , COMECE EM CASA .
As maiores mudanças começam mesmo dentro de casa, Gio. No dia que todas as mulheres tiverem consciência disso e começarem a educar seus filhos e suas filhas sem machismo, sem homofobia, sem racismo e sem preconceitos de qualquer natureza, o mundo terá jeito sim. Bjos e obrigada pelo comentário aqui no blog!
Andreia, acredito que você diz tudo quando fala que o aspecto mais importante não é discutido: a opressão do machismo, que regula papéis de gênero e comportamentos sociais. Machismo este que não somente cria estereótipos em relação ao ser homem e ao ser mulher, como também cria e mantém a imagem culturalmente corrente de rejeição ao feminino.
Muito boa análise, Andreia. Não existe nenhum laivo de censura na lei. Os que fazem tal acusação ou são equivocados, meros papagaios, ou interessados em continuar recebendo dinheiro público para continuar com a deseducação. Quem quiser que continue comprando tal lixo, mas nada de usar nosso dinheiro para pagar a esses meros presepeiros semianalfabetos. Abraços
É isso, Beto! Beijos
Texto brilhante. PARABÉNS!
Obrigada, Daza :)
Oi Andreia!
Gostei muito do seu texto; acho que ele precisa ser lido, relido, divulgado e discutido.
Um beijo!
Oi Nayara, obrigada pelo incentivo. Bjos