Independência…

Uma criança de seis anos de idade não sabe muito bem o que faz. Mas tente explicar isso para a sua avó muito braba e adepta da didática do chinelo, se você é a criança em questão e irmã mais velha de uma menina de quatro, que devia saber menos ainda o que fazia na época em que aconteceu essa história. Minha irmã não devia, mas ela sabia. Precocemente, buscou sua independência e de quebra, me ensinou a perseguir a minha. A lição doeu mais em mim do que nela, até porque, os mais velhos, desde que o mundo é mundo, são obrigados a nascer ajuizados, é uma espécie de selo. Na maternidade, chegado a este mundo o primogênito, junto com a declaração de “nascido vivo” e o diploma do Teste do Pezinho, a criança recebe uma etiqueta ISO 9000: “Filho mais velho, 100% de eficiência comprovada e garantia de que terá juízo extra, para si e para os irmãos menores, que ainda hão de nascer”. Um fardo, concordam? Principalmente quando costumam levar as palmadas no lugar dos caçulas. Eu levei e não foi só uma. Os chinelos de dona Antonieta cantavam que era uma beleza, no meu lombo! Desta vez, as ocasiões em que eu e os famosos chinelos de vovó travamos íntimo contato foram muitas ao longo da primeira infância (só não apanhei mais porque ela morreu pouco antes de eu fazer sete anos), o motivo foi um simples erro de cálculo. Minha irmã não entendeu que aos quatros anos – e aos seis – as crianças não estão autorizadas a dar um drible na tia que as buscava na escola para experimentar a sensação provocada por essa tal palavrinha: independência. Morávamos a uma distância de cerca de três ou quatro ruas do colégio. Mas o problema é que estávamos em lados opostos e no meio do caminho, se não havia pedras, tinha uma autopista (lembrando o querido Saramago). Primeiro passo, implantar a ideia maligna na mente da irmã mais velha, que embora fosse maior, era mais suscetível. Eu poderia declarar a meu favor que apenas acompanhei minha irmã para garantir que ela chegaria inteira em casa, para protegê-la (mais uma das tarefas obrigatórias que deve constar do currículo de todo filho mais velho que se preza). Mas a verdade é que a ideia da aventura pareceu-me deliciosamente sedutora na ocasião. Com a autoconfiança dos ingênuos de coração, juro que achei que iria ganhar um doce ao chegar em casa, pela proeza e pela independência conquistada, nunca palmadas! Atravessar a pista foi o desafio seguinte. Diz o ditado que “Deus protege os inocentes”. Fosse porque os anjos do senhor estavam de guarda ou pura sorte de principiante, escapamos de uma morte terrível por atropelamento duplo e alcançamos o outro lado. Vencer os quarteirões até em casa foi moleza. Mãozinhas dadas, merendeiras, pastas escolares (não tinha mochila na época. Ao menos, nós não tínhamos) e passos saltitantes, chegamos sãs e salvas para colher os louros de nossa vitória. Diante da pergunta de minha avó -“Vieram com quem?” -, confesso que me acovardei e na hora passou-me pela cabeça o nome de uma vizinha qualquer. A língua de minha irmã, mentora intelectual do crime, porém, foi mais rápida e a resposta veio fulminante, na sequência: “Sozinhas, minha avó!”

E o resto da história vocês já sabem…

Advertisement

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s