Diz o ditado que não se deve julgar um livro pela capa e seguindo fielmente a máxima, encarei a leitura de Cuidado! Seu príncipe pode ser uma Cinderela, lançamento do BestSeller, selo do Grupo Editorial Record, sem fazer pré julgamentos. Uma amiga, editora de Literatura, me deu o livro para “uma avaliada”. “Leia, pode ser um assunto bacana para tratar no seu blog”. E é mesmo. Bem disposta para novas experiências literárias, comecei pela orelha, prefácio e tudo o mais que nos ajuda a entender o contexto da obra, daí em diante avancei pelo conteúdo propriamente dito das 207 páginas da publicação.
O livro foi escrito por duas jornalistas, Consuelo Dieguez e Ticiana Azevedo, com base na experiência de uma personagem – Sofia – que por sete anos foi casada com um “gay no armário”. O casamento, diz a obra, foi a forma de o noivo disfarçar sua orientação sexual para a sociedade. Junto com a história de Sofia, as autoras – que optam por uma mistura de narrativa em primeira e terceira pessoas, depoimentos, entrevistas e roda de bate-papo, publicaram outros relatos de mulheres que tiveram envolvimento com homossexuais. Também publicaram depoimentos de gays e utilizaram um amigo hetero como contraponto.
Hummm… O tema promete, visto que não são poucas as mulheres que já passaram pela situação de descobrir que os maridos são gays, tampouco são raras as que já se apaixonaram por homossexuais e há, inclusive, aquelas que acreditam que podem mudar a orientação sexual de outra pessoa! Não é a toa que a seara dos desejos e afetos humanos rende quilômetros de pano para a manga dos psicanalistas
Só que os problemas com a abordagem do assunto começam logo no primeiro capítulo, quando fica muito claro que o discurso das autoras é o “heteronormativo” (ou seja, aquele que categoriza os seres humanos e os aprisiona em rótulos, qualificando – adjetivando – as pessoas e atribuindo-lhes valor). Sofia, a personagem que viveu a experiência de descobrir a orientação sexual do marido logo depois de ter tido um aneurisma por estresse no trabalho, está visivelmente traumatizada e, lógico, uma pessoa assim vai avaliar todos os homens, sejam gays ou heteros, com uma lente de aumento passional.
Boas intenções – A intenção das autoras, explicado logo na abertura do livro, é “orientar” as mulheres “incautas” para não caírem no conto do moço bonito, cheiroso, arrumadinho, porque esse tipo é logo taxado de “gay no armário”. Se for educado e culto então, batata!, as autoras e Sofia, sua personagem principal, vão logo dizendo que nem adianta investir porque “o cara gosta da mesma coisa que você”. Homem fino não existe, na abordagem deste livro. Saber cozinhar bem, cuidar da casa, usar creme hidratante, gostar de decoração? Tudo isso é atribuído ao universo gay, sem concessões. O que me leva a crer que, nas entrelinhas, as autoras estão dizendo que macho de verdade precisa ser tosco e rude, o que pessoalmente, discordo totalmente.
Virilidade não tem relação com educação, gentileza ou vaidade. Homossexuais podem ser extremamente viris, sem que para isso queiram ir para a cama com mulheres e nem precisem namorar ou casar com uma. Virilidade, segundo o dicionário, significa: “esforço”, “vigor” e “coragem”. A associação da palavra virilidade com a potência sexual masculina dos heterossexuais tem relação com a “norma” estabelecida junto com a dominação patriarcal para controlar a sociedade, começando pelo controle das mulheres e estendendo-se às pessoas que contrariam essa “norma” estabelecida.
Em alguns momentos há afirmações no livro do tipo, “se o cara se produz mais do que você é porque é uma mega biba” ou então “moda não é assunto de homem”, ou homem de verdade não faz isso ou aquilo. A título de ensinar as mulheres a fugir dos “gays no armário” em busca de escudo protetor, a obra destila preconceito. Em alguns capítulos, há o interesse tanto das autoras quanto da personagem em afirmar que não são homofóbicas, que tem amigos gays e que respeitam e gostam de gays e coisa e tal.Dizer que tem amigos gays não as isenta de homofobia. Logo adiante, há afirmações do tipo “não existe bissexualidade masculina” (dando a entender que somente entre mulheres é que a questão ocorre. E isso me lembra aqueles homens que dizem que tem tesão em ver duas mulheres na cama, mas reagem violentamente se a namorada confessa que também tem o mesmo desejo, só que ao inverso).
Uma pesquisa norte-americana é usada como base argumentativa para “desconstruir a bissexualidade masculina”, mas de forma tão superficial que não pode ser levada a sério. Lembra uma daquelas pesquisas do século XIX que culminaram com a colocação da homossexualidade (no caso chamada de homossexualismo na época) no codex das doenças da OMC (Organização Mundial de Saúde), de onde só saiu recentemente!!
Não digo que as mulheres reunidas para o livro, sejam as autoras ou a personagem; ou as pessoas ouvidas em entrevista, sejam homofóbicas, porque não as conheço e não tenho direito de afirmar isso. Mas o livro, com toda certeza, ao menos no que entendo como homofobia, é sim, e muito. Pode até ser que tenha sido inconsciente, o discurso machista e heteronormativo está tão impregnado no nosso dia a dia que mal percebemos, mas ele está lá, disfarçado de leveza e piada em cada uma das páginas da obra ou na caracterização do gay na TV, no cinema, teatro.
Trauma e reação – Também não desmereço o tema e nem o trauma vivido por Sofia. Até compreendo que o objetivo é narrar uma experiência que deve ter sido muito dolorosa – ela tinha acabado de sair do hospital, isso também conta ponto na extensão do dano – e aqui não falo do fato do marido ser gay e esconder por sete anos, cito é o fato de que houve uma traição de confiança em uma relação a dois. Sendo que a base de qualquer envolvimento, ou relacionamento humano, seja de casal ou entre amigos e familiares, é a confiança.
Há coisas tão pueris e por isso, perigosas, no livro, que as autoras chegam a afirmar que quem usa a palavra “relacionamento” ou a frase “estou envolvido com uma pessoa” é gay e ponto final. E eu que achava que as duas palavras, “relacionamento” e “pessoa”, não tinham gênero!
O que me deixou decepcionada com a obra é que a título de dar leveza a um tema tabu, o livro é raso e leviano, porque aborda situações e comportamentos sem a devida análise, porque usa expressões dúbias, porque em certos trechos ridiculariza a homossexualidade e a separa do que seria um “comportamento normal” (pasmem!). No fim das contas dá a sensação de ser a catarse de um ressentimento e não um trabalho que poderia sim, ajudar outras mulheres a superar a experiência negativa da traição da confiança em uma relação com outra pessoa.
“Queer eye” – Embora o prefácio seja assinado por um homossexual, o olhar dele não está isento de preconceito. Chega a afirmar que as mulheres que mantém casamentos com gays e não conseguem enxergar que o marido tem outra orientação sexual abriram mão do orgasmo. Sofia vai mais longe, diz que um casamento entre um gay e uma mulher é juntar “a falta de apetite (deles por mulheres) com a anorexia” (delas, por visivelmente, na opinião de Sofia, não gostarem de sexo. Ou seja, casou com um gay que “dá bandeira” e mantém a farsa, então é porque a mulher é frígida). Ninguém disse para Sofia ou para as autoras, ou para o amigo gay que prefacia a obra, que a sexualidade humana não é essa coisa rasa e rasteira. Se fosse, não precisaríamos ter inventado a psicanálise.
Embora tenha depoimentos de homossexuais na obra, o olhar também não é isento. Lembro de um dos meus professores da faculdade, na época em que cursava disciplina como aluna especial do mestrado. Ele dizia que existe homofobia entre os gays tanto quanto entre os hetero. E falava como alguém que é profundo estudioso da teoria queer (os estudos sobre gênero que falam sobre a construção social dos papeis sexuais).
Mais para o final do livro alguns depoimentos de gays não assumidos, ou “no armário”, são comoventes e preocupantes, tanto pela angustia de viver uma farsa quanto pelo fato de muitos destilarem homofobia e até “nojo” de homossexuais!! Não faltam as histórias sobre homens que se dizem heterossexuais e que entram em salas de bate-papo da internet, ou nos banheiros da vida, para procurar outros homens para se envolver e que no meio da conversa ou do ato sexual, destilam ódio contra gays, separando “o gostar de uma sacanagem com outros machos”, da “frescura de veado”. Ou seja, gostam de transar com homens, mas “não me venha com boiolices”. Mais uma vez, lamentável!
Essas são situações extremamente complexas. O que leva uma pessoa a ter comportamento tão paradoxal, querer o envolvimento com o mesmo sexo, mas rejeitá-lo? Hipocrisia? Pressão social? Vergonha? Medo? Insegurança? Não tem como categorizar e nem rotular, porque só quem vive a experiência sabe como é. Da mesma forma que, só uma mulher que tenha descoberto que o marido é gay pode saber como se sente com a revelação. No mínimo ficará com raiva. Também se sentirá frustrada. Provavelmente enfrentará abalos na autoestima. Mas não creio que é ligando um “gaydar” para avaliar cada homem do planeta que ela irá superar a experiência.
Mensagem subliminar – Pergunto-me se as mulheres ficam mais chocadas com a traição em si ou com a revelação da orientação sexual dos maridos? E se eles as trocassem por outra mulher? Aí não tem trauma, diriam vocês. Traição de confiança, para mim, é traição. Também não tem gênero. Mas a resposta de como uma mulher reage ao fato vai depender da forma como ela lida com a sexualidade, seja hetero ou homo, de um modo geral. Ou seja, o quão bem resolvida é com a própria orientação e com as orientações alheias. Além claro, de que um casamento não se baseia 100% em sexo e só quem vive um casamento sabe o lugar que o sexo ocupa na vida do casal.
Não tiro a razão de quem se sente triste, deprimida ou até perde o chão por um tempo, porque quem enfrenta essa situação não deixa de ter sido usada como disfarce e ser usada, em qualquer circunstância, é terrível. Mas não diminuo o impacto das mulheres que, por exemplo, descobrem depois de anos que o marido tinha outra mulher, outros filhos, e levava vida dupla da mesma forma.
Não defendo aqui os homens que, sabendo de sua orientação sexual, optam por casar com uma mulher apenas para manter cargos, posições, esconder da família, fazer figura e etc. Não sou ingênua, esses homens existem e não são raros. Mas o único momento em que concordo com as autoras do livro é quando dizem que ao usar o disfarce “vida normativa, com esposa e filhos”, esses homens estão cavando uma existência de sofrimentos tanto para a esposa quanto para si mesmos. Sem contar com o fato de que para ter filhos ninguém precisa ser hetero!
Discordo é da forma como o tema é abordado, porque me lembra horrivelmente as novelas que criam estereótipos do tipo de gay que a sociedade aceita e o tipo que rejeita e relega ao gueto, enquadrando – separando – todos os homossexuais nesse padrão. “Ah, ele é gay, mas é discreto, sabe se comportar!”
As causas que levam homossexuais a se casar com o sexo oposto e constituir família com base em uma mentira e em sofrimento não são investigadas em nenhum momento no livro e nem adianta usar a desculpa de que a obra não pretende ser um tratado, mas apenas um texto inocente e divertido. Para mim, nada que possa formar opinião é inocente de verdade.
O preconceito da sociedade, a heteronormatividade que molda padrões do tipo “homens são de marte e mulheres de vênus”, “menino isso, menina aquilo” não é questionada ou sequer posta em xeque, sendo que é graças a essa visão enviesada da sociedade que acontecem os casamentos frustrados de Sofia e de outras mulheres ouvidas para o livro.
No prefácio escrito pelo amigo gay das autoras, ele diz que não consegue entender que tipo de “carência cega” é essa que leva as mulheres que se envolvem com gays a rejeitar uma realidade que deveria “saltar aos olhos”. Pergunto-me se é tão simples assim ou se é mero caso de uns saberem disfarçar mais e outros menos?! Sinceramente, acredito que não seja mera carência afetiva e muito menos ingenuidade de mulher apaixonada ou convencimento no disfarce. Também não digo que os gays no armário que se casam com mulheres são todos mau-caráter ou todos vítimas da sociedade homofóbica. Alguém já parou para pensar que esses homens é que podem estar carentes e ao encontrar afeto e admiração, mesmo sendo do sexo oposto, aceitam sem questionar, ainda que se arrependam depois e não saibam mais sair da sinuca em que se meteram ao alimentar uma relação que contraria suas inclinações?
O que aprendi na vida é que cada relação é construída de uma forma, com base em uma dinâmica que só os dois envolvidos sabe qual é. O que leva ao envolvimento, ao casamento, ao divórcio, a felicidade ou a frustração, só os dois sabem. O que sei também é que ex gays ou ex heteros não existem e que a ciência (seja biologia ou psicologia) não conseguiu explicar ainda, de forma definitiva, o que nos serve de bússola, de norte, desde a infância ou adolescência, que nos faz seguir esta ou aquela orientação na vida adulta. Discute-se até o conceito de gênero, ultimamente. Uma coisa é certa, o determinismo biológico caiu em desuso há muito tempo, embora seja sustentado por visões como a que vaza das entrelinhas deste livro.
Muitas formas de amor – Muito se especula sobre homossexualidade e boa parte do preconceito vigente, da violência e da intolerância, vem justamente de explicações apressadas ou de estereótipos que livros assim acabam ajudando a reforçar, mesmo quando dizem tentar fazer justamente o contrário.
Senti falta de um “queer eye” sobre o livro e lamento que um tema tão rico tenha sido desperdiçado em clichês que não contribuem em nada para evitar que num futuro próximo, gays não precisem nem de armários (com exceção daqueles de guardar pertences) e nem de relações frustradas para buscarem afirmação, aceitação ou seja lá o que uma pessoa busca na outra na hora em que a elege para companhia de uma vida, ou de parte da vida.
No fundo, todos nós, enquanto seres humanos – independente da orientação – queremos é ser amados. E o amor, bem dizem os poetas, assume as mais variadas formas.