Ler o romance Estranha Presença me lembrou o filme O orfanato, de Juan Antonio Bayona, estrelado por Belén Rueda. A obra, tal qual a produção cinematográfica, se passa em uma casa antiga, decadente, claustrofóbica apesar do tamanho, cheia de quartos escuros e mistérios do passado. A semelhança do livro de Sarah Waters com o filme não fica por aí. Trata-se do mesmo tipo de atmosfera assustadora que une o sobrenatural das típicas histórias de fantasma e o psicológico. Tem uma nuance sutil de Psicose, de Alfred Hitchcock. Nas mãos do mestre, Estranha Presença se tornaria tão primoroso quanto a saga de Norman Bates.
Há um mal interno que alimenta forças sinistras exteriores que, uma vez liberadas, agirão até as últimas conseqüências. O tom fatalista acompanha o romance desde o primeiro capítulo e em certos momentos, torna a leitura angustiante.

A personagem de Belén Rueda em O orfanato e da jovem Caroline Ayres no romance de Sarah Waters tem semelhanças
O livro conta a história de uma família de aristocratas ingleses falida após a II Guerra Mundial e vivendo em uma antiga mansão rural arruinada. O pano de fundo é a morte de um modo de vida e o surgimento de outro. Parte das terras da antiga fazenda foi desapropriada para que o governo construa loteamentos de casas para uma nova classe média emergente. A família Ayres, enquanto ressente-se da glória perdida e teme a aproximação da “ralé”, afunda em dívidas e dramas psicológicos que desenterram medos profundos e antigos. A loucura ronda.
A história é contada pelo amigo dos Ayres, um comedido, pacato, porém ambicioso, médico que encarna o protótipo do homem metódico e fleumático britânico, chamado Faraday. Vindo dessa mesma ralé rejeitada pelos aristocratas, ao longo da trama, ele ganha a confiança da família por sua aparente solidez moral e mental. A proximidade com a atormentada família, porém, envolve-o nos acontecimentos sobrenaturais que tem como cenário a sinistra mansão de Hundreds Hall.

Também em comum com O orfanato, o livro traz a atmosfera opressiva e os segredos por trás das muitas portas da antiga mansão
A narrativa hábil de Sara Waters propõe o bom e velho jogo de espelhos. Nem tudo é o que parece ser e as conclusões mais apressadas do leitor acabam frustradas pela habilidosa e intrincada trama da autora. Para quem gosta de ser surpreendido, as expectativas são prontamente atendidas. Além disso, ela propõe um romance entre Faraday e a herdeira da mansão, Caroline Ayres, pontuado por preconceitos de classe, expectativas e desejos de uma fuga da realidade vivida pelos dois. O leitor tem uma intuição do que poderá resultar de semelhante enlace, mas a autora ilude a percepção até dos mais argutos.
A trama contada por um observador também envolvido na história não deixa de trazer aquelas questões de sempre sobre o quanto da nossa visão de leitor está contaminada pelo olhar de um único personagem. A dica é ler as entrelinhas, ter em mente a sequência cronológica dos fatos e se ater aos “atos falhos” da narrativa de Faraday. Pelo desafio à sagacidade do leitor, o texto lembra Conan Doyle e Agatha Christie, não à toa dois autores britânicos – assim como também é o cineasta Alfred Hitchcock – de literatura de mistério, que precederam Sarah Waters e lançaram bases sólidas para este tipo de entretenimento que não se pretende elaboradíssimo ou erudito, mas é intenso dentro da sua proposta.
Ficha Técnica:
Estranha Presença
Autora: Sarah Waters
Tradução: Ana Luiza Dantas Borges
Editora Record
4480 páginas / Preço: 57,90
Olá Andreia, tudo bem?!
Sim, eu entendi isso perfeitamente, porém imaginei que você houvesse lido o romance que originou o filme Psicose, que é inclusive mais perturbador, absorvente e fascinante que sua adaptação para a sétima arte. Não que o filme não o seja, aprecio muito tanto os filmes quanto as coletâneas organizadas por Hitchcock. Compreendo que Estranha Presença seria uma ótima adaptação, se feita pelas mão corretas, mas como quase nunca acontece, acho que não superaria a obra de inspiração.
A atmosfera realmente é apaixonante e digna de um conto de fantasmas vitoriano. Talvez nesse sentido Estranha Presença esteja mais próximo da ambientação do filme Os Outros (The Others – 2001), com sua mansão sombria rodeada por uma atmosfera desolada e nevoenta e suas personagens melancólicas e sugestionáveis; caso ainda não tenha assistido, faça-o, você vai se inspirar. O Orfanato também é um ótima pedida.
Até mais.
Já assisti Os Outros. Estranha Presença, até onde eu sei, não virou filme ainda. Essa resenha é de 2011, época em que li o livro. Nunca ouvi falar que tivessem filmado. O selo Vestígio, da Autêntica, está com uma coleção Hitchcock, já publicaram dois livros: Vertigo e A dama oculta. Acredito que devem publicar Psicose também. Hitch não era escritor, nem roteirista, mas era hábil na direção, em manipular a percepção da audiência e em extrair dos livros que tinha interesse em filmar, os elementos mais adequados a um bom filme de suspense e terror. O que me fascina na literatura é que cada pessoa que lê um livro, interpreta essa leitura com base nas próprias referências culturais, psicológicas, de vida, nas próprias crenças, etc. Duas pessoas não leem um livro da mesma forma e o texto de uma resenha é algo extremamente particular. Acho fascinante como a percepção das coisas muda de pessoa para pessoa. Eu vi Hitchcock no texto de Estranha Presença, talvez porque a obra desse cineasta me interesse bastante, você não viu, porque suas referências são outras :)
Abs!
Só uma coisinha: o mestre a que você se refere seria Robert Bloch autor de Psicose, certo? Hitchcock é responsável apenas pela adaptação para o cinema.
Olá Moisés,
Obrigada pelo seu comentário, mas como no início da comparação da minha leitura de “Estranha Presença”, eu atribuo a atmosfera do livro a mesma sensação que tive ao assistir ao filme ‘O Orfanato’; e na sequência falo de ‘Psicose’, acredito que esteja bem claro que estou falando do filme, uma das obras primas do mestre do suspense Alfred Hitchcock. O que quis dizer, talvez se eu explicar melhor, você entenda, é que ‘Estranha Presença”, tem a mesma atmosfera angustiante e claustrofóbica desses dois filmes de terror e suspense, respectivamente. Muitas vezes, nas minhas resenhas, para dar uma ideia precisa aos leitores do tipo de livro do qual estou falando, eu comparo com outras linguagens artísticas, como o cinema, ou canções, pinturas, etc. Eu nunca li nenhum romance de Robert Bloch, não posso chamá-lo de mestre. Mas Hitchcock e sua forma de fazer cinema, conheço bastante. Inclusive, no final do primeiro parágrafo da resenha fica mais claro ainda que estou falando do modo hitchcokiano de filmar, quando digo que nas mãos do mestre, Estranha Presença ficaria interessante. Ou seja, se Hitch filmasse esse livro, seria um filme tão impactante e clássico do suspense quanto Psicose. Resumindo: a autora de “Estranha Presença” tem uma forma hitchcokiana de escrever :)
Abraços!
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