Finais em aberto ou desfechos inesperados não costumam cair no gosto do leitor médio. Mas as opiniões contrárias ao livro A menina que não sabia ler partem de um mal entendido da tradução em português, que por um equívoco na titulação, associa essa obra de John Harding ao magistral A menina que roubava livros (Marcus Zusak). No entanto, o erro não é do autor de Florence and Giles, o título original de A menina que não sabia ler. Conhecendo esse título, é bem mais fácil compreender as intenções do autor.
Primeiro, é importante ressaltar que o livro de Harding não tem a menor semelhança com a história comovente de Liesel Meminger, personagem principal de A menina que roubava livros. Portanto, quem vai ler um pensando no outro, limpe a mente a abra-a para uma experiência diferente. A única coincidência entre um e outro é que as duas obras falam do fascínio da leitura, mas por caminhos próprios. Enquanto Zusak ambienta sua obra na Alemanha nazista, por exemplo, John Harding escolhe a Nova Inglaterra (Virgínia) do final do século XIX para tecer a aura de mistério que envolve sua trama.
No entanto, Florence, a personagem principal de Harding, lembra sim uma outra protagonista da literatura. A mim, ao menos, parece tão dissimuladamente cativante quanto a Fany de Jane Austen (Mansfield Park). E não é só uma justa homenagem ao lado obscuro e subentendido de Fany que o autor de A menina que não sabia ler faz nesta obra. Usando os clichês da literatura de suspense de forma bastante inteligente, ele rende uma justa homenagem a atmosfera sombria e lúgubre das obras de Edgar Allan Poe.
Muita gente tem dito que o livro bebe na fonte de A volta do parafuso. Mas, honestamente, há apenas um perfume de Henry James, algo bem sutil, que paira no ar e nos recônditos da velha mansão decadente que serve de cenário ao drama de Florence e de seu irmãozinho Giles.
A menina que não sabia ler é Edgar Allan Poe até a medula. Não à toa, Florence é fã do escritor. A descrença na humanidade presente nas obras de Poe, além de seus personagens atormentados, a loucura e o que se esconde na escuridão, seja de um quarto ou da mente de uma criança abandonada à própria sorte, são o pano de fundo dessa narrativa que no fundo fala mesmo é da solidão, da indiferença dos adultos e do quanto um amor incondicional, como o de uma irmã mais velha pelo irmãozinho, podem ser uma combinação perigosa se não existe um ponto de equilíbrio.
Os livros, alimento para a imaginação, ao invés de consolar, como no caso de Liesel Meminger, em A menina que não sabia ler servem apenas de combustível para queimar ressentimentos adormecidos desde a mais tenra infância.
Além de me lembrar Fany, com sua doçura calculada e por vezes cínica, Florence também me lembra Bentinho, personagem de Don Casmurro (obra ícone de Machado de Assis). Isso porque, narrado em primeira pessoa, pela própria Florence, o livro só nos mostra uma perspectiva das coisas, e sempre sob o ponto de vista imaginativo dela. Se em Don Casmurro somos levados a desconfiar de Capitu graças aos ciúmes e as distorções de percepção que o sentimento provoca no olhar de Bentinho; em A menina que não sabia ler, embarcamos, até certo ponto, nos devaneios solitários de Florence, atiçados pelos livros que leu e pela negligência de quem deveria cuidar dela. Vemos a mansão, Giles e principalmente os adultos, sob o foco da menina.

Estilo da narrativa lembra a habilidade de Agatha Christie em seus jogos de mostra e esconde, feitos para confundir o leitor ao longo da obra
O golpe de mestre de John Harding é levar o leitor em banho-maria, fazendo-o acreditar que está diante de uma coisa, de um “conto sobre a doce órfã Anne”. Mas pouco a pouco, a cortina é descerrada, provocando incredulidade e até repulsa. Essa transição porém, não é feita de maneira improvisada. Os indícios, para o bom entendedor, estão visíveis ao longo do livro. Como um hábil artífice, ele constrói sua trama fio a fio e enreda o leitor, tornando-o um cúmplice involuntário. E aqui, nesse joguinho hábil de mostra e esconde, ele lembra a dama Agatha Christie.
Vale ainda ressaltar que, embora com tantas citações a gêneros e autores célebres, A menina que não sabia ler tem ritmo e encanto próprios. Não é imitação, mas reverência aos mestres. Por ser ambientado no século XIX e narrado por uma personagem desta época, o livro tem ainda uma linguagem que em certos momentos parece revestida do pó solene do tempo. O que para mim ao menos, é um molho a mais.
Ficha Técnica:
Autor: John Harding
Editora: Leya
288 páginas / R$ 39,90
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Oi!
Nossa, essa foi , até agora (pra mim), a melhor análise que li sobre esse livro que me fascinou! Quando terminei, procurei pra tudo qto é lugar comentários de quem já o havia lido…
Realmente, o leitor médio não está preparado (ou simplesmente não gosta) de histórias que nos deixam a pensar, e pensar, ao fim da leitura…
Acho sim, também, que a capa que colocaram deu muito mal entendido; ( a original é bem mais fiel…); no meu caso mesmo, quase não li o livro , pois “julguei-o pela capa”….
Bom, sei apaixonei-me por ele, com todas suas belas estranhezas…
Mas, estou com uma pequena dúvida: quantas páginas ele tem, realmente? Porque, pra mim, eram 282; mas em alguns lugares indicam que são 288; por isso, até hoje não sei se li o livro todo! Estou com a impressão que não o li todo…
Será que você poderia esclarecer pra mim?
O livro, pra mim, terminou dessa forma: “… Sentei-me em minha torre e fiquei olhando para eles enquanto desciam pela entrada, cavalo e cavaleiro fundindo-se em uma forma escura, uma gralha preta no meio da neve branca”.
Por favor, estou até agoniada com isso… Por isso espero uma resposta sua, se possível!
Muito obrigada!
Oi Denise,
A última frase do livro é exatamente esta que você cita, ao menos no meu exemplar. O que pode acontecer de dar essa diferença de número de páginas é que algumas edições são de bolso, ou seja, são mais compactas, menores, embora tenham o texto na íntegra (uma edição pode ser compactada com a letra menor, com o espaço mais estreito entre as linhas e etc). Acredito que você tenha lido a história completa, ao menos leu a mesma história que eu. Abraços!
Eu adorei a A Menina que Não Sabia Ler e, como bem elucidou, também acredito que o título do livro nos faz julgar e comparar com parâmetros que, depois de lidos, percebemos que não tem nada a ver. Foi um dos melhores livros que li ano passado e o Título em inglês, Florence e Giles, relata de forma mais coerente o propósito do livro e a fascinação de Florence pelo seu irmão. A narrativa é sedutora, intrigante e fiquei, após concluir a leitura, com o livro na mente por dias, rindo de um final que pouco esperava. É muito bom, mesmo. Nos faz sair de muitos estereotipos dos best-seller atuais.
Muito boa a resenha!
Obrigada, Daiane :)
Sua análise aqui nos comentários também é muito boa. Abraços!
ai, agora tou adicionando vários títulos à lista de leitura!
E haja lista, Mabia, rsrsrs. Ler é bom demais, rsrsrsr :)