Reportagem: Literatura que se alimenta do exílio

A reportagem abaixo foi publicada na contracapa da edição deste sábado, do Caderno 2+, do jornal A TARDE. Reproduzo aqui para os interessados. No post abaixo ou no link, tem a resenha de Pequena Abelha, Chris Cleave, livro que motivou essa tentativa de reflexão sobre “a moderna literatura do exílio”. Espero que gostem!

Romances e obras de não-ficção revelam as tragédias dos refugiados

Andreia Santana

No mundo, há pelos menos um século, não existem mais terras a colonizar e os chamados países em desenvolvimento precisam empurrar a sua miséria para baixo do tapete. O excedente populacional não absorvido, foragido da violência, fome e de governos totalitários, pressiona as fronteiras dos países prósperos e o resultado é o que se vê nos noticiários: imigração ilegal, o constrangimento moral das deportações; além da paranoia da xenofobia.

A literatura, que como bem disse Umberto Eco, retira sua matéria-prima da realidade, traduz as tragédias dos socialmente excluídos em romances que flertam com a linguagem jornalística e em obras de não ficção que de tão trágicas parecem saídas do reino da fantasia. Nos últimos dez anos, essas “crônicas modernas do exílio” pegaram carona também na “caça as bruxas”, acirrada após os ataques de 11 de Setembro de 2001.

A obra mais recente dessa lavra é Pequena Abelha, do britânico Chris Cleave, lançada no Brasil pela Intrínseca. O livro, considerado best seller e em primeiro lugar entre os mais vendidos do New York Times, conta a história de uma adolescente nigeriana refugiada no Reino Unido. É ficção, mas inspira-se na guerra por petróleo ocorrida no Delta do Níger e na realidade dos centros de “acolhimento” de refugiados, mantidos na Inglaterra para “abrigar” o contingente de imigrantes ilegais que forçam as fronteiras da União Europeia.

A personagem principal de Pequena Abelha, embora não exista em carne e osso, tem uma trajetória facilmente associada a da jovem ativista de Serra Leoa, Mariatu Kamara, que após sofrer e denunciar – na autobiografia A mordida da manga (Ed. Planeta, 2010) – as atrocidades da guerra civil em um dos países mais pobres da África; criou a Fundação Mariatu, no Canadá, centro de ajuda internacional para refugiadas e seus filhos.

Dramas reais – Segundo o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, os países em desenvolvimento, “retardatários da modernidade”, geram centenas de refugiados sociais. “Numa era em que as grandes ideias perderam credibilidade, o medo do inimigo fantasma é tudo o que restou aos políticos para manterem seu poder”, analisa Bauman na obra Tempos Líquidos.

Não é só o acadêmico que foca o tema. De volta ao terreno da literatura leiga, de ficção ou não, é exatamente esse medo do “outro” descrito de forma técnica pelo sociólogo polonês, que perpassa relatos como os das biografias Um diário para Jordan (Geração Editorial, 2010) e Fuga do Iraque (Larousse do Brasil, 2009). O primeiro foi escrito pela viúva de um tenente americano que iniciou um diário para o filho, pois temia morrer durante a guerra no Iraque. O tenente morreu em 2005, vítima de um explosivo. O segundo foi escrito por Lewis Alsamari, ex-soldado e ator iraquiano que conseguiu asilo político na mesma Inglaterra descrita por Chris Cleave como de fronteiras blindadas.

Do Oriente Médio chegam outros exemplos de crônicas modernas do exílio e em duas recentes, o talibã é apresentado sob o olhar de afegãos que discordam dos métodos desse grupo. O caçador de pipas (Nova Fronteira, 2005), que virou filme em 2009, é ficção inspirada nas recordações do escritor afegão Khaled Hosseini, que vive nos Estados Unidos.
Uma burca por amor (Ed Planeta, 2011), da jornalista Reyes Monforte, é a história real de María Galera. Ao acompanhar o marido em viagem ao Afeganistão, país de origem dele, María vira prisioneira da burocracia. Assaltado, o casal perde os documentos e fica impedido de deixar o país. Enquanto María poderia sair de lá devido à origem espanhola, o marido Nasrad, que já vivia e trabalhava na Europa, tem o pedido de reingresso negado por conta de sua origem.

O livro acompanha o caso de María Galera. Vivendo sob o regime implantado pelo talibã, ela é forçada a adotar a burca e viver conforme as rígidas proibições para as mulheres no Afeganistão, enquanto luta para conseguir o visto de Nasrad. Um programa inspirado no caso é um dos mais vistos da tv espanhola, dando mostras de que mesmo que os governos virem as costas, os dramas dos refugiados rendem audiência.

Há notícias, inclusive, de que Pequena Abelha já teve os direitos comprados por Nicole Kidman e será adaptado para o cinema.

Para ler: o exílio em prosa

>>Uma burca por amor
Autora: Reyes Monforte
Editora Planeta
304 páginas / R$ 39,90

>>Um diário para Jordan
Autora: Dana Kanedy
Geração Editorial
288 páginas / R$ 39,90

>>A mordida da Manga
Autoras: Mariatu Kamara e Susan Mclelland
Editora Planeta
208 páginas / R$ 29,90

>>Fuga do Iraque
Autor: Lewis Alsamari
Editora: Laurousse do Brasil
344 páginas / R$ 54,90

>>O Caçador de Pipas
Autor: Khaled Hosseini
Editora: Nova Fronteira
365 páginas / R$ 19,90

*As fotos do post são do filme Hotel Ruanda, uma coprodução de Itália, Reino Unido e África do Sul, de 2004, dirigida por Terry George e protagonizada por Don Cheadle.

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5 pensamentos sobre “Reportagem: Literatura que se alimenta do exílio

  1. Pingback: Terry kanedy | Allaneinhorn

  2. Adorei sua reportagem, que está intrinsecamente ligada a produção literária a partir desses eventos. São livros que, certamente, quero ler. “O Caçador de Pipas“ já é um conhecido meu pela leitura e cinema. Assim, também, como “ Cidade de Sol“ desse mesmo autor e que narra a vontade, o sonho de duas mulheres em busca de fuga, de um exílio qualquer. Embora não tenha citado este último, seu texto me fez rememorar ele. O fato de ser ficção ou não, claro, faz diferença, mas não tanta a ponto de não relacionarmos com a realidade que várias pessoas vivencia pelo mundo.

    Beijão e paz!

    • Oi Daiane, também já li A cidade do sol e é realmente muito bom. A cidade do sol também se passa no Afeganistão, sob o mesmo regime do Talibã e mostra com mais clareza a opressão feminina naquele país. Mas ele não cabia no contexto da minha reportagem, que tem relação com a imigração e a paranoia da xenofobia agravada pela “caça ao terror” pós 11 de Setembro. Abraços

  3. Oi, Andreia,
    gostei muito do seu texto “Literatura que se alimenta do exílo”.
    Eu também leio bastante o Zigmunt Bauman. Acabei de Ler “A arte de reduzir as cabeças – Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal”, de Dany-Robert Dufour, publicado aqui pela Companhia de Freud. Como tenho lido muito do que você também escolheu ler, fica a indicação.
    Um abraço,
    Luzia de Maria

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