Resenha: A paixão de Artemísia

Para quem gosta de histórias edificantes e de heroínas que superam todas as dificuldades em busca de realizar seu maior sonho, A paixão de Artemísia (Ed. José Olympio) é um prato cheio. A história trágica e o fato da personagem ter existido e conquistado reputação como artista em um mundo dominado por homens e regras rígidas de comportamento, só dão um molho ainda mais condimentado a essa biografia romanceada de uma das únicas pintoras que o Renascimento conheceu: Artemísia Gentileschi (Floresça, 1593-1653).

A autora Susan Vreeland poderia fácil ter descambado para o melodrama, porque a vida de Artemísia renderia um daqueles filmes lacrimosos sem muito esforço (a Miramax levou a história dela para o cinema, em 1997), mas ao invés de transformar sua heroína em mártir, a escritora faz a opção por mostrar o árduo caminho de uma mulher na descoberta de si mesma. É dramático, mas nem de longe piegas. O livro mescla de forma competente, os principais fatos da vida real e dolorosa de Artemísia com situações fictícias que dão o tempero a mais da obra, mas sem perder a dosagem. Pode tanto ser lido como um belo romance feminino que honra a tradição de uma Jane Austen, por exemplo, como pode ser saboreado como o rico panorama de um dos movimentos artísticos mais fascinantes da história. Não faltam alusões a Galileu, Michelangelo Buonarroti (sobrinho de Michelangelo) e outros artistas e cientistas célebres da época.

Suzana molestada no banho, quadro de 1610, de Artemisia Gentileschi

Imbuída de uma dignidade inata, Artemísia foi um daqueles espíritos geniais, que só de tempos em tempos povoa a terra. Dona de um dom artístico que provinha de uma sensibilidade impar para perceber o mundo, ela precisou brigar não só contra o preconceito de gênero para afirmar-se na academia de pintura de Floresça, mas também contra o ciúme e as “panelinhas” existentes nesse meio.

A concorrência era dura entre os homens, porque os artistas disputavam – nem sempre de forma muito honesta – as benesses das famílias nobres e abastadas. Era o tempo do mecenato e um artista sem um mecenas rico não ia muito longe. Para uma mulher, atrair os favores de um desses patrocinadores sem que ele cobrasse mais do que belos quadros, era uma conquista digna da mais acirrada feminista. Na ocasião em que Artemísia floresceu como artista, as mulheres eram aceitas nas academias de arte apenas como modelos para quadros e esculturas. Ela foi pioneira em buscar para as mulheres um lugar de destaque do lado oposto do cavalete.

A vida pessoal atribulada contribuiu para que se transformasse numa espécie de mito. Aos 18 anos, foi estuprada por seu professor de pintura. Seu pai denunciou o agressor à corte, mas de vítima, por hábeis manobras dos juízes, Artemísia passou facilmente a ré. Foi torturada com ferramentas da Inquisição para confessar que ao invés de ter sido agredida, havia se insinuado para o professor! Saiu do julgamento com a reputação na lama e o corpo alquebrado pelos castigos físicos, mas nunca deixou de acreditar na própria arte, que conquistou até a mais poderosa família italiana do período, os Médici.

Os fatos narrados sobre o estupro, o julgamento, o casamento de conveniência que o pai a obrigou a aceitar após a violência sexual, a filha que teve com o marido arranjado, o rompimento com a família e suas inúmeras viagens de cidade em cidade em busca de patrocínio, não são propriamente novidade. As biografias oficiais da artista – até no Google – trazem esses e outros detalhes.

A visão de Artemísia para o suicídio de Cleópatra

Mas o que Susan Vreeland faz é tecer com a imaginação de boa contadora de histórias, as motivações pessoais que levaram Artemísia a escolher os caminhos que percorreu na vida. Ela vai além da cronologia dos fatos e explora, por exemplo, os dilemas de mãe e artista, em conflito eterno entre cuidar da filha e deixar-se envolver pelo turbilhão criativo. Paradoxo aliás, que aproxima essa mulher que viveu há quatro séculos, das mães de agora.

Através de descrições minuciosas dos quadros de Artemísia Gentileschi que sobreviveram à corrosão do tempo, Vreeland teoriza sobre a alma dessa mulher que tinha tudo para ter sido engolida pela vida, mas que decidiu beber até a última gota da taça de amarguras que lhe foi legada, usando uma metáfora bem renascentista, e extraiu de cada adversidade a matéria-prima de sua aclamada expressão artística.

Ao longo da vida, Artemísia transformou suas dores em quadros de nus femininos – outra revolução para a época, porque os nus dela eram a máxima expressão da realidade -, metáfora para o desamparo e a superação diária das mulheres vivendo em um mundo cruelmente masculino em seu tempo e, de certa, em todos os tempos antes e depois dela.

Ficha técnica:
A paixão de Artemísia
Susan Vreeland
Tradução: Beatriz Horta
Editora: José Olympio
272 páginas / R$ 45,00

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3 pensamentos sobre “Resenha: A paixão de Artemísia

  1. O filme sobre Artemisia – que você comentou – , de 1997, me deixou intrigado. Em aula de História da Arte, também soube que foi estuprada e, não sendo considerada vítima – fato que é fruto da maravilhosa (ironia) reputação da mulher na antiguidade – foi ridicularizada. O filme porém, traz um romance entre ela e seu professor, Agostino Tassi, e que o estupro foi apenas um descuido, de Tassi “não saber (Oh!)” que Artemisia seria virgem. No filme, após o fato, o romance continua, mesmo depois do fato, até o pai de Artemisia descobrir o romance, e então, denunciar Tassi. O desfecho, bem, é o mesmo que você citou: torturas; corte a favor de Tassi; etc, Enfim, creio que tirei a dúvida, de saber realmente se foi estuprada e protagonizou mais uma injustiça histórica contra as mulheres, porém, acabou dando sua volta por cima e recebendo seu destaque no Renascimento. Sua história é admirável.
    Enfim, obrigado.

  2. muito bom essa pesquisa estou fazendo um trabalho sobre a pintora se possivel gostaria que me enviasse sujestão, grato..

    • Oi Jorge Paulo,
      Não se trata de pesquisa, mas de uma resenha literária do livro A paixão de Artemisia, um romance que mistura fatos da vida da pintora com ficção. Eu apenas li o livro e escrevi sobre ele. Tem também um filme sobre a vida de Artemisia Gentileschi, que você pode buscar em alguma locadora. Já vi verbete sobre ela na wikipedia e lá tem também referências bibliográficas. Abs e boa sorte!

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