Em janeiro de 1991, 198 mil fãs se espremiam no Maracanã, durante o Rock in Rio II, para ver um dos fenômenos da década, a banda A-ha, vinda de Oslo (Noruega). A façanha foi parar no Guiness Book. Naquele mesmo ano, das mesmas terras geladas na Escandinávia de onde ecoavam sucessos como Take On Me, uma menina de 14 anos conquistaria uma quantidade ainda maior de fãs.
A diferença é que enquanto o A-ha caiu no ostracismo, Sofia Amundsen mantém, vinte anos, 26 milhões de exemplares vendidos e 55 traduções depois, o apelo pop e o mérito de ter tirado a filosofia da academia e trazido para o cotidiano. “A única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas”, escreve Jostein Gaarder, “o pai de Sofia”, logo no segundo capítulo.
Fenômeno literário – O mundo de Sofia só chegou ao Brasil em 1995, mas trazendo na bagagem recordes como os três milhões de exemplares que voaram das prateleiras das livrarias da Alemanha no ano de lançamento. Deste lado do Atlântico, o livro coleciona façanhas igualmente notáveis: está na 77ª reimpressão e figura como uma das obras mais vendidas do catálogo da Editora Companhia das Letras.
Para se ter uma ideia do que significam os vinte anos de lançamento de O mundo de Sofia, principalmente entre o público brasileiro, o país ostenta um índice médio de leitura de 4,7 livros por habitante, segundo estudo do Instituto Pró-Livro. Fica atrás da Tailândia e Filipinas no ranking mundial de leitores e o índice é menos da metade dos leitores na Índia: 10,7. No entanto, só em 2009, O Mundo de Sofia vendeu 950 mil exemplares no país. O interesse renovado tem relação ainda com os fins didáticos da obra. Os professores indicam e os pais aproveitam para ler também.
Grandes questões da humanidade e vida “ordinária” combinadas
Em uma entrevista concedida em 2005, durante visita ao Brasil para o lançamento no país de O dia do Curinga (também da Cia. das Letras), obra anterior a O mundo de Sofia, mas que só ganhou notoriedade após o sucesso deste, Jostein Gaarder afirmou que a literatura é a segunda melhor maneira de transmitir conhecimento. A primeira é o diálogo. “Desde a antiga filosofia grega, o diálogo entre as pessoas vivas foi a melhor maneira de lidar com o conhecimento”, declarou na ocasião.
E é justamente pela conversação (só que através de cartas) que o autor comunica aos jovens, por meio da adolescente Sofia, as verdades filosóficas que ajudaram a moldar todo o pensamento ocidental, no que isso tem de bom e de ruim. Unindo elementos de thriller de mistério, com metaficção, literatura adolescente e didatismo, o livro funciona como um manual de introdução ao pensamento crítico. E virou parâmetro para outras obras posteriores, como a saga Mundo de Tinta, da alemã Cornélia Funke, que usa os mesmos recursos de metalinguagem para falar não de filosofia, mas da literatura em si e da necessidade que os humanos tem de contar histórias.
Jostein Gaarder, antes de dedicar-se à carreira literária, o que passou a fazer integralmente graças ao sucesso de Sofia, era professor de ensino médio. Costuma dizer em entrevistas que escreveu o livro pensando na paixão pela sala de aula e na interação aluno-professor. Ainda segundo o escritor, ao finalizar a obra, achou que ninguém iria ler, já que o tema filosofia, por si só, já remontava ao estereótipo de academia enquanto lugar de intelectuais esnobes e inacessíveis. Vinte anos depois, ainda se surpreende com o sucesso perene do livro, mas atribui a popularidade ao formato que escolheu, o da simplicidade: “O pensamento claro é simples e pode ser explicado facilmente”.
A escolha pela simplificação, se de um lado aproximou os adolescentes da filosofia, por outro, ainda suscita críticas severas entre acadêmicos que acusam o livro de raso e de abordar em poucas linhas conceitos que levaram séculos sendo discutidos. O autor dá de ombros para as reclamações, até porque, afirma, não pensou em um trabalho acadêmico quando escreveu Sofia. Queria era contar a “fascinante” história da origem do pensamento. Gaarder, ao que parece, é da mesma escola do autor britânico Roald Dahl (A fantástica fábrica de chocolate), que acreditava que boas histórias são boas histórias independente da faixa etária ou do grau de instrução do leitor. Também defende que para pensar filosoficamente uma pessoa só precisa do estímulo certo.
Sofia na TV – O mundo de Sofia, ao contrário de obras bem menos conhecidas, não virou blockbuster em Hollywood, mas em 1999 transformou-se em minissérie para a tv norueguesa, que fez um relativo sucesso na Europa e também Austrália, onde a jovem aprendiz de filósofa tem muitos admiradores. Com direção de Erik Gustavson, a série chegou ao Brasil em DVD, em 2008, na esteira das altas vendas do livro no país.
Uma breve resenha: “O mundo do conhecimento”
A palavra sofia vem da língua grega e significa conhecimento. Não é à toa que Jostein Gaarder escolhe este nome para sua protagonista. O mundo de Sofia, traduzindo literalmente, é “o mundo do conhecimento”, que na visão deste autor, é acessível a todos. Desde que as palavras sejam despidas da pompa limitadora e imbuídas de simplicidade, revelam que certos “grandes mistérios” só precisam de um pouco de esforço de raciocínio para serem desvendados.
Parece utópico em um mundo tão desigual acreditar que o conhecimento um dia será de fato acessível a todos, mas com seu carismático livro que se pretende um “romance da história da filosofia”, Gaarder nos mostra que sem utopias sequer teríamos chegado à civilização. Nesse contexto, O mundo de Sofia também fala de poder. É fato que quanto mais informação alguém adquire, mais capaz torna-se de questionar a “ordem natural das coisas” e menos se conforma com o status quo. Como diz a brasileira Guiomar de Grammond: “ler torna o homem perigosamente humano”.
Para quem não conhece a obra, O mundo de Sofia conta a história de uma adolescente que perto de completar 15 anos, começa a receber cartas misteriosas com um curso de filosofia gratuito, oferecido por um tal de Alberto Knox, de quem nunca ouviu falar. Ao mesmo tempo, a vida da menina vira de cabeça para baixo porque ela parece intimamente ligada a de outra garota que tem sua idade e faz aniversário no mesmo dia, Hilde Knag.
Enquanto, guiada por Knox, percorre os séculos, passando pelas diversas escolas filosóficas, desde os pré-socráticos da antiga Grécia até Sartre, Sofia precisa lutar contra o tempo para desvendar o mistério de Hilde, do qual depende sua própria existência.
O livro trata ao mesmo tempo do conhecimento abrangente – o que é o mundo? -, e de autoconhecimento. A primeira pergunta que Alberto Knox faz para Sofia é o clássico “quem é você?” A resposta da menina é reveladora: ‘eu sou uma pessoa, sou Sofia’. Boa metáfora para a velha fórmula de Descartes, “penso, logo existo”.
Ficha Técnica:
Autor: Jostein Gaarder
Tradução: João Azenha Jr.
Editora Companhia das Letras / 555 páginas / R$ 49,50
*Minha reportagem sobre os 20 anos do livro O mundo de Sofia foi publicada na edição do Caderno 2+ de A TARDE do sábado, 22/01/2011.
Homenagem mais do que merecida a um livro que não só mostrou a todos o mundo de Sofia como também modificou o mundo particular de cada leitor. É impossível permanecer o mesmo depois da leitura desse clássico moderno. Eu tinha apenas 16 anos quando meu mundo foi modificado com a primeira leitura. Na semana passada conclui a releitura. Já não éramos mais os mesmos, o livro e eu.
Muito bem lembrado!!! A forma com Gaarder estruturou o livro é incrível. Eu me surpreendi quando terminei de lê-lo. A melhor parte, na minha opinião, é o final.
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Este é um dos livros que já li há muito tempo (presente maravilhoso de meu pai, que plantou em meu coração a paixão pela leitura) e morro de vontade de voltar a ler. O Mundo de Sofia é uma aula perfeita de filosofia, em uma linguagem que nunca reconheci em nenhum livro do gênero. Recomendadíssimo!
Beijos
Com certeza Dani, é recomendadíssimo. Também adoro :) Beijos