Concluí na última semana a leitura de Não há silêncio que não termine, livro em que a ex-candidata ao governo colombiano, Ingrid Betancourt narra os quase sete anos em que foi prisioneira das Farc (leia a resenha aqui). Com senso crítico, a autora traça um raio-X comovente da condição humana, mas, principalmente, da condição feminina na guerrilha. O cotidiano de mulheres que, aparentemente, abrem mão da feminilidade para se dedicar à causa revolucionária chamou minha atenção ao longo das 556 páginas do livro.
No início de sua narrativa, Ingrid surpreende-se com a beleza das jovens guerrilheiras. Apesar de carregarem fuzis, as moças das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) não abrem mão de manter os cabelos muito bem penteados e presos em tranças, ou de usar o uniforme de camuflagem o mais impecável possível. Algumas utilizam cintos coloridos, tecidos com fibras naturais tingidas. Enquanto era prisioneira, a própria autora teceu alguns cintos para dar aos filhos na sua libertação.
No entanto, em condições extremas de sobrevivência na selva, faltam às guerrilheiras os pequenos luxos que seduzem às mulheres em geral, sejam ricas ou pobres, como maquiagem, lingeries e perfume. O discurso ideológico dos comandantes é que tratam-se de desejos “burgueses”. Mas, embora abram mão desses objetos em nome “da causa”, o conflito entre cobiçar e não poder ter é perceptível nas moças que, em grande maioria, tem menos de 20 anos e muitos sonhos de adolescente, incluindo os de consumo e amor.
Igualdade, mas nem tanto – O que mais me impressionou, porém, nas descrições de Não há silêncio que não termine são as relações de gênero estabelecidas no front da guerrilha. O discurso ideológico, com bases no Comunismo, é o da igualdade incondicional entre os seres humanos, independente do sexo, mas a prática dessas relações revela uma realidade muito diferente da teoria.
As moças da guerrilha são de fato igualadas aos homens nos trabalhos pesados que realizam. Se elas derrubam árvores a machadada e abrem picadas na selva, eles costuram botas e mochilas ou fazem a comida na rancha (cozinha). Se existem comandantes homens nos acampamentos, também existem locais comandados por mulheres, embora sejam em muito menor número. O treinamento militar é o mesmo e a capacidade de matar, idem.
Mas, quando a igualdade alcança o terreno sexual é que a coisa muda de figura. Ao menos, no que mostra o livro. Ingrid Betancourt nos conta que muitas jovens que entram para as Farc estão fugindo primeiro da pobreza extrema (a Colômbia é um país de forte desigualdade social) e depois da prostituição. Uma vez engajadas, elas são “obrigadas” a ceder às “necessidades” sexuais dos guerrilheiros, sob pena de serem acusadas de “atitude anti revolucionária” caso recusem (!!!).
Lógico que, por não viver a experiência dessas jovens, não posso saber se elas se arrependem da escolha que fizeram ou se de fato o diabo é tão feio quanto Ingrid pinta. Faço estas reflexões com base no testemunho de outra pessoa. E neste caso, com base nos relatos de um livro escrito por uma ex-refém das Farc. Falar bem de seus antigos carcereiros é que ela não vai, embora o livro de Ingrid Betancourt seja bastante ponderado e dotado de senso de justiça. Mas fiquei me perguntando, caso a situação seja realmente essa que a autora narra, onde está a liberdade e a condição de igualdade de gênero se uma mulher perde o direito de recusar-se a dormir com um homem e precisa fazê-lo contra sua vontade e sob pressão ideológica?!
“Atitude anti revolucionária”, acredito, é um eufemismo para disfarçar a desigualdade de condições porque, por baixo da suposta ideologia dorme o machismo atávico. Boa parte dos recrutados para a guerrilha são oriundos da zona rural, onde tradicionalmente, certos hábitos arraigados e disfarçados de “cultura” local, custam a mudar. Os camaradas, inclusive, narra a autora, podem infligir pequenas punições – como aumentar a carga de tarefas ou confiar missões mais arriscadas – às camaradas que recusem-lhes os “favores sexuais”. Provavelmente, jovens com senso crítico mais apurado devem se questionar se não fugiram de uma forma de prostituição para cair em outra.
Moeda de troca – O sexo para a guerrilha, ainda segundo as narrativas de Betancourt, vira uma arma política, mas nem por isso, conforme a leitura que fiz da situação, dá mais poder às mulheres. Ao contrário, só enfatiza a dominação masculina. As jovens que querem ascender aos postos mais altos das Farc precisam virar rangueras (espécie de concubina) dos comandantes. Dormindo com quem detém o poder é que elas podem garantir luxos mínimos e uma certa autoridade sobre os demais guerrilheiros. Perder o favoritismo do chefe é cair em desgraça. Isso, definitivamente não é empoderador!
Para disfarçar a exploração, o sexo é reduzido a uma “necessidade fisiológica” e o amor terminantemente banido do dicionário e dos corações. Se o comando percebe que há um casal apaixonado no front, os dois são separados e vai cada um para um acampamento. A motivação é bem mais o ciúme do comandante, caso ele tenha interesse na jovem, do que a desculpa de que sentimentos passionais desviariam a atenção da “causa” revolucionária.
Sem dúvida, o livro de Ingrid Betancourt abre várias questões que precisariam de estudo aprofundado e de outras fontes de comparação, até mais isentas que a ex-refém. Repito que não sei como é a vida das mulheres na guerrilha em outros destacamentos que não este colombiano, mas acredito que o assunto renda pano para a manga.
Não raras vezes, a autora reproduz diálogos que mantinha com as suas carcereiras. Curiosa, queria saber as bases do recrutamento ideológico das moças. Na maioria das vezes, recebia um silêncio ressentido como resposta. Uma prova de que tanto dentro quanto fora do contexto de guerrilha, as relações de gênero ainda são um campo minado.
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