Cena 1
“Você pisou em cocô de cachorro, menino! Mas será possível que não olha por onde anda? Tira o tênis! Anda, tira logo isso aí…” O som de buzina, no trânsito intenso, pré hora do rush, abafa a bronca da mãe. O menino, sentando no meio fio, na calçada onde fica o ponto de ônibus, estica o pé feito um papagaio. A mãe – zangadíssima – arranca os tênis contaminados com os excrementos de algum dos cachorros vadios que perambulam, donos de si e totalmente livres das convenções humanas, nas imediações do terminal de passageiros. “Mas você é lerdo, viu! Não presta atenção em nada. Como não viu que tinha sujeira e que não podia pisar? Foi de propósito?” O menino balança a cabeça, negando. “Mas também, essas ruas dessa cidade estão imundas, imundas” – o terceiro imunda já é olhando para uma interlocutora, uma senhora de meia-idade, que reforça a queixa. A mãe segue reclamando da prefeitura e condena todos os cachorros vadios do mundo a uma dolorosa morte: “que virem todos sabão!”. De dentro da bolsa, retira um saco plástico: “tá vendo se eu não trago sempre um saco na bolsa…” – diz, olhando o filho, ainda sentado no meio fio, com o pé esticado para não deixar as meias brancas encostarem no chão sujo. Periquitinho australiano de meias. Um contrassenso, uma vez que ele inteiro está bem ali, exposto a poeira e aos pés dos adultos que embarcam e desembarcam dos ônibus. Ela se dá conta e, após acondicionar os tênis sujos no saco e enfiar o saco na bolsona que traz presa ao ombro, inclina-se e carrega o menino. “Cê tá pesado heim, Lucas!”. Lucas, ele tem nome de apóstolo. Tá na cara, foi como um dos seguidores de Cristo que aceitou – estoicamente – o rompante da mãe e as palavras duras da bronca, apedrejado em praça pública. Agora, bonzinho feito um dos anjos que enfeitam o manto da Virgem, reclina a cabeça sobre o outro ombro dela, o que está livre da bolsa e dos tênis que cheiram mal. Adormece em poucos minutos, no sacudir nervoso que é o embalar das mães que precisam dividir o mesmo corpo entre o peso dos filhos e o peso do mundo guardado na sacola…
Cena 2
O telefone toca e toca e toca. Ocupada em frente ao computador, a mulher não sabe se atende ou se termina logo o relatório que o chefe exigiu que fosse entregue, como sem falta, até o final daquela tarde. No quinto ou sexto toque, atende: “Oh meu amor, é você?!” Mistura de expectativa recompensada com a certeza de que ele ligaria, bem naquele horário. “Como foi o seu dia?” E a conversa segue entre perguntas triviais e arrulhos. Quem vê de fora, como a colega ao lado, pensa que o namorado com quem a outra fala ao telefone não tem o que fazer da vida. Imagina, ligar no meio da tarde!? De vez em quando, a mulher ao telefone baixa o tom de voz, mal é possível captar o que ela diz. Depois, ri alto, como quem escuta alguma coisa muito gostosa de se ouvir. Inveja. A colega sem namorado, na mesa ao lado, já imagina as delícias que a outra está ouvindo e sente uma inveja enorme corroer-lhe o peito. Mas a mulher ao telefone parece alheia ao mundo em redor, ao ploc ploc dos teclados das vizinhas de mesa. Por cinco minutos, esquece o chefe, o relatório, as colegas ao lado e o despeito soterrado e traduzido pelos vincos de canto de boca…
“Tchau, filho. Beijo, amor da minha vida! Beijo, beijo, beijo… Agora a mamãe tem de desligar. Quando eu chegar em casa você me conta o resto, tá?”…
Cena 3
“Tá pesada essa mala, heim!”. Mas, pesado e pequeno é o coração da mãe que carrega a sacola de viagem em uma das mãos. 13 anos! Meus Deus, o menino só tem 13 anos e vai viajar pela segunda vez, sozinho, sem nenhum membro da família para tomar conta dele! A mãe caminha pela rua, olha de soslaio aquele rapazinho tão íntimo e ao mesmo tempo tão desconhecido. Esse bigodinho descarado aí na cara, o peito largo, um perfume de homem. “Quando foi que esse menino começou a usar perfume de adulto!?”. A conversa segue o rumo das expectativas da nova viagem, das atividades programadas. É orgulho o que ela sente, pela independência dele, que tanto incentivou, desde pequeno, mas é também um pouco de tristeza por ser relegada ao segundo plano. Pouco a pouco, eles deixam de ser um só, tornam-se dois intimamente ligados, mas ainda assim, tornam-se dois. Na porta da escola, de onde vai sair a excursão, ele entra e ela o segue, para depois voltar sobre os próprios passos. “Mãe, vai lá para fora, tá? As outras mães estão lá”. Ela olha para ele com uma mistura de decepção e graça. “Tô pagando mico, né?”. Ele acena positivamente e ri. Por um minuto, é o riso do menino que até pouco tempo a chamava pelo nome completo: “Mamãe”. Suspiros e ela pensa, enquanto olha para as outras mães que já estão “lá fora”, nas semelhanças e diferenças entre todas aquelas mulheres. Todas tem em comum a mesma sensação de orgulho e nostalgia. Todas sentem falta dos seus meninos pequenos, mas admiram os homenzinhos com suas mochilas e sacolas de viagem, os bonés, os mp3 ao ouvido, os mesmos tênis all star esfarrapados. São tão parecidos e são tão únicos… Chega a hora do ônibus partir e eles formam fila. Centrados, olham uns para os outros, olhar para as mães é secretamente proibido. Existe um código entre eles, mãe em público é coadjuvante. Colo agora, só em casa, longe dos olhares curiosos e do julgamento que enquadra as manifestações rasgadas de afeto no grau máximo da vergonha. Mico? Orangotango! As bobas estão todas lá, mas eles não sabem que elas também possuem seu código secreto e milenar. Um fio invisível as une, a solidariedade de saberem-se abandonadas e a satisfação pela certeza de que esse abandono, foram elas mesmas que pediram a partir do momento que os ensinaram a ser homens…