Resenha: As novas biografias de Luiz Gama

Neste sábado, o Caderno 2+ de A TARDE trouxe publicada minha reportagem/resenha sobre as novas biografias lançadas este ano do jornalista, advogado e poeta Luiz Gama, filho da revolucionária Luiza Mahim (tema de uma reportagem minha de 2004, quando era repórter do Correio da Bahia, atual Correio*). Foi muito bom voltar ao tema, dessa vez aprofundando o olhar sobre o filho de Luiza, que na reportagem anterior teve direito a uma das páginas no caderno especial sobre a mãe dele. Por coincidência (se é que coincidências existem) chegou às minhas mãos nesta sexta – quando finalizava os ajustes no texto sobre Luiz Gama – o livro Maria Felipa de Oliveira – A heroína negra da Independência, da professora Eny Kleyde Vasconcelos. Maria Felipa também foi tema de uma das minhas reportagens históricas, bem na época em que a professora Eny iniciava sua pesquisa sobre a personagem. “A vida é engraçada, gira mesmo em círculos”. Mas, os acontecimentos recentes da minha, na área de literatura, só fazem reforçar uma frase que ouvi uma vez de uma amiga. Numa despedida, ela me disse: “não esqueça de quem você é”. É isso, tenho tentado me lembrar diariamente quem sou. E o retorno a este ciclo jornalístico-literário-histórico só reforça a convicção. Confiram o texto abaixo:

As muitas vidas de Luiz Gama na luta pela liberdade
Poeta e jornalista nascido na Bahia, no século XIX, ganha biografia que revela os bastidores das suas muitas batalhas nos tribunais para libertar os negros da escravidão

Andreia Santana

Luiz Gama foi poeta lírico e satírico, advogado e jornalista comprometido com causas sociais no seu tempo

Um menino baiano, filho de um fidalgo com uma africana rebelde, foi vendido como escravo pelo pai, reconquistou a liberdade, serviu ao exército, trabalhou como escrevente de polícia, foi impedido (pela cor) de cursar a faculdade, mas ainda assim tornou-se poeta, jornalista e advogado. Embora sem diploma e anel, conseguiu resgatar 500 negros da escravidão em pleno Brasil imperial. Novela das seis? Ficção? Parece, mas esse menino existiu, chamava-se Luiz Gama e este ano, 180 após o seu nascimento e 128 da morte prematura, por diabetes, ganhou nova biografia, que resgata a história de suas heroicas batalhas em defesa da liberdade nos tribunais.

Lançado pela editora Lettera.doc, O advogado dos escravos, escrito pelo também advogado paulista e mestre em Direito do Trabalho, Nelson Câmara, é um tributo às contribuições de Luiz Gama tanto para as causas da abolição e da proclamação da república, quanto para a história do próprio direito brasileiro. Aos aficionados por história, o livro traz um panorama do funcionamento do judiciário durante o segundo império e reúne farta documentação até então ainda não publicada sobre a vida de Gama.

Os pedidos de habeas corpus impetrados pelo chamado “apóstolo negro da abolição” em defesa dos cativos que batiam à sua porta pedindo ajuda; trechos dos seus discursos em defesa daqueles que por revolta tinham assassinado os senhores – ficou famosa a frase em que afirmava “Perante o Direito, é justificável o crime do escravo perpetrado na pessoa do senhor” -, os embates ideológicos em reuniões do partido republicano, a amizade com Castro Alves e Rui Barbosa, mais fotos e gravuras; além de cronologia e dos dados biográficos, completam o volume de 316 páginas, desdobramento de uma obra anterior de Nelson Câmara sobre a escravidão no império de D. Pedro II.

Filho de rebelde – Em O advogado dos escravos está publicada também a íntegra da carta autobiográfica que Luiz Gama endereçou a um amigo, dois anos antes de morrer. No documento, ele conta que nasceu em Salvador, em um sobrado na freguesia de Santana, em 1830. Era filho da líder rebelde Luiza Mahim, envolvida na Bahia em diversas rebeliões como a Sabinada e a Revolta dos Malês. Seu pai, que ele nunca revelou quem era, tinha origem nobre, mas dilapidou a fortuna no jogo e na bebida, vendendo o filho para saldar dívidas.

Mercado de escravos no Rio de Janeiro, em ilustração de Maria Graham, cronista britânica que visitou o Brasil em 1822 / 23 e parte do ano de 1824, vindo inclusive para Salvador. O mercado onde Luiz Gama foi oferecido a senhores de engenho era semelhante a este

Em 1840, aos dez anos, o menino foi embarcado em um navio no porto de Salvador, após o pai dizer-lhe que iriam dar um passeio – e levado para São Paulo, onde seria vendido em leilão de escravos. Recusado por todos os compradores por ser baiano – os negros baianos tinham fama de insurrectos -, foi levado para a casa de um comerciante, de onde saiu aos 17, após aprender a ler e reunir documentos que provavam sua condição de homem livre.

Incorporado ao exército, foi expulso por “insubordinação”, porque não aceitou submeter-se às crueldades de um superior racista. Mais velho, conseguiu emprego como escrevente da polícia. Passou 12 anos no serviço público, mas foi exonerado por perseguição dos superiores devido às suas atividades no partido republicano e a militância na causa da abolição.

“Orfeu de Carapinha” – Paralelo ao serviço público, Luiz Gama é considerado o pioneiro na imprensa satírica paulista, tendo fundado diversos jornais, entre eles O Diabo Coxo, o primeiro a ser ilustrado e a introduzir a caricatura nos jornais do império. Como jornalista, publicava artigos que mexiam com os brios da elite escravista. Ele também compunha versos. Chamado de “Orfeu (em referência ao poeta mítico grego), de carapinha” (devido ao cabelo crespo), era mestre tanto de sátira quanto da poesia lírica.

Só publicou um livro: Primeiras trovas burlescas de Getulino. Na segunda edição da obra é que consta seu poema mais famoso, Quem sou eu, também chamado Bodarrada, onde ironiza com os apelidos pejorativos usados para os negros no período (bode, cabra) e brinca com a mania da elite brasileira de renegar a miscigenação e dizer-se branca de origem. Considerado um dos primeiros autores a elogiar a beleza das mulheres negras em versos, dedicou um poema à Luiza Mahim, chamado Minha Mãe. É dele também a descrição mais famosa da personalidade dela: “minha mãe era nagô de nação, altiva, geniosa, insofrida, vingativa e pagã”.

Guardadas as devidas proporções e diferenças de cultura, país e época, a rebeldia de Luiz Gama pode ser comparada a do líder norte-americano Malcom X, principalmente na frase mais famosa do advogado, poeta e jornalista brasileiro do século XIX: “Perante o Direito, é justificável o crime do escravo perpetrado na pessoa do senhor”.

Selo Negro – Além do livro de Nelson Câmara, este ano a memória de Luiz Gama ganhou ainda biografia da coleção Retratos do Brasil Negro, da Selo Negro Edições. Projeto coordenado pela mestra e doutora em sociologia pela Michigan State University (EUA), Vera Lúcia Benedito, a coleção tem o objetivo de abordar a vida e a obra de figuras de importância fundamental na cultura, política e militância negra.

A biografia de Gama na coleção foi escrita pelo jornalista e mestre em Sociologia Luiz Carlos Santos, que além de trazer os principais fatos da vida do poeta, jornalista e advogado, também publica a íntegra de alguns dos poemas mais famosos de Gama.

Biografias passionais – Falar de Luiz Gama sem paixão é impossível, uma vez que o próprio tinha fama de passional, temperamental e ao mesmo tempo era um homem cativante. As duas biografias recentes dele não negam que seus autores caíram de amores pelo biografado ao tentar reunir o grande quebra-cabeças da vida de Gama em uma narrativa coesa e linear. Tanto Nelson Câmara quanto Luis Carlos Santos não disfarçam as convicções pessoais ao falar do quase mítico personagem.

Se por um lado é bom saber que um advogado escreve sobre a atuação de Gama nos tribunais e que um militante do movimento negro ressalta o engajamento social do “Orfeu de carapinha”; por outro, o comprometimento dos autores com o direito e a militância podem tornar a leitura das duas obras cansativa ou excessivamente politizada em alguns trechos. No caso do livro de Nelson Câmara, mesmo a obra sendo acessível aos não familiarizados com a linguagem jurídica, em algumas passagens, o jargão predomina e o leitor médio se confunde.

As inclinações românticas, cordialidade e elegância de Luiz Gama, segundo seus biógrafos, que o tornavam um homem cativante e ímpar, o aproximam também de outro líder negro americano: Martin Luther King. No entanto, o brasileiro tem a primazia do nascimento na luta pelos direitos civis dos negros

O mérito desses livros é o resgate histórico da figura de Luiz Gama e a contribuição para eternizar o legado de um dos pioneiros da abolição, da imprensa satírica e da poesia lírica afro descendente no Brasil. Nelson Câmara, por exemplo, revela que Luiz Gama, embora atuasse com mais fervor para livrar da cadeia os escravos que cometiam crimes ou para alforriar homens, mulheres e crianças trazidos ilegalmente ao país após a extinção do tráfico por decreto, não fechava a porta de seu escritório a nenhum cliente pobre, mesmo que fosse branco. Em meio aos habeas corpus e petições redigidos por Gama, havia pedidos em prol de muitos europeus que haviam sido lesados por brasileiros. De quem não podia pagar, ele nunca cobrou um centavo. Nem dos escravos e nem dos brancos pobres.

Já Luis Carlos Santos resgata os poemas de Gama homenageando a beleza das mulheres negras com um lirismo típico dos românticos da geração de Castro Alves, embora o advogado negro fosse mais velho em idade. No mínimo, aponta para a necessidade de uma revisão no panteão de poetas representantes dos gêneros literários nacionais, demonstrando que existe uma tradição de poesia negra no país, nascida em pleno século XIX, pré abolição.

Fichas técnicas:

O advogado dos escravos – Luiz Gama

Autor: Nelson Câmara

Lettera.doc (www.letteradoc.com.br)

316 páginas / R$ 39,90

Luiz Gama – Coleção Retratos do Brasil Negro

Autor: Luiz Carlos Santos

Selo Negro Edições (www.selonegro.com.br)

120 páginas / R$ 21,00

3 pensamentos sobre “Resenha: As novas biografias de Luiz Gama

  1. Pingback: Resenha: Um defeito de cor – Mar de Histórias

  2. Oi Luiza,
    É porque no blog só tem os livros que eu já li ou aqueles que me interessam escrever a respeito. Infelizmente, nem sempre a gente encontra o que procura de primeira. Busque em outros sites para ver se tem mais sorte. Abs!

  3. Pingback: Poeta Cruz e Souza ganha biografia pelo Selo Negro | Mar de Histórias

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