Autopiedade e lugar-comum

Maria Eduarda gostava de brigas espetaculares, daquelas que os vizinhos ouviam em detalhes, como novela de rádio das de antigamente. Era Arnaldo chegar do trabalho e ela se plantava na entrada do banheiro, mãos nas cadeiras, pulmões cheios de ar, uma garganta de soprano. E tome-lhe desenterrar dos cafundós da memória todos os maus momentos vividos em comum até aquele dia. Do aniversário esquecido no primeiro ano de namoro à conta da lavanderia, que veio altíssima por causa das meias sujas do baba de sábado passado, o estopim do sermão da vez.

Arnaldo ouvia tudo calado, indiferente. Entrava no banho, abria o chuveiro, passava sabão, enxaguava, enrolava a toalha na cintura e ia para o espelho pentear o cabelo. Do lado de fora, roxa de tanto berrar, Maria Eduarda reclamava do apartamento minúsculo, da vida medíocre, da vizinhança intrometida, do salário dele que era baixo, da faxineira, do emprego que ela não pediu a deus e onde o chefe era a própria encarnação do demônio, da sobrinha de uma conhecida que tinha dado mole para ele no réveillon de mil novecentos e bolinha.

Depois chorava, chorava e chorava. Sentada no corredor, costas apoiadas na parede, rosto entre as mãos, abria o berreiro, se lamentava de estar tão chata, culpava a TPM, se achava gorda, se achava velha, uma péssima esposa, um fracasso de mulher, nem para dar-lhe filhos servia…

Nessa hora, Arnaldo abria a porta do banheiro, deixava o cheiro fresco de banho e loção de barba invadir a casa. Estendia a mão para Maria Eduarda, ali no chão, tão entregue à autopiedade. Beijava-lhe o pescoço, secava as lágrimas com as pontas dos dedos, abraçava e embalava como se ela fosse uma filha dengosa e malcriada, a conduzia até a mesa. Ainda enrolado na toalha, ia até a cozinha. Assobiando uma canção antiga, esquentava dois pratos no micro-ondas, pegava talheres, a garrafa de água. E os dois comiam entre os soluços de Maria Eduarda e os ‘deixa disso’ de Arnaldo.

No fim da noite, ele lavava a louça e ela fungava enquanto enxugava os pratos, resignada em suspiros e soluços. Antes de dormir, outro beijo, e mais outro, e outro e ainda outro, tantos que ela perdia a conta… Arnaldo apagava a luz do abajur e entre sério e gozador dizia: “você pode dar seu show toda noite Maria Eduarda, eu não ligo. Só não pode é ter dor de cabeça. No dia em que você começar a ter enxaquecas, aí nosso casamento acaba. Aguento tudo, menos mulher com enxaqueca na hora de deitar”.

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