Continuo a publicação da análise de Psicose. O filme de Alfred Hitchcock completa 50 anos de seu lançamento nesta quarta…
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Leia o começo da análise:
>>In memoriam: Os 50 anos de Psicose I
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Psicose: O assassinato como obra de arte (continuação)
No motel Bates, Marion e Norman começam um pequeno jogo de sedução, onde ela tem consciência do fascínio sobre o rapaz. Norman, por sua vez, tenta esconder o quanto está impressionado com ela. Neste jantar improvisado em uma sala repleta das aves empalhadas de Norman (ele explica, com uma espécie de fixação, o hobby em lidar com animais passivos), Marion e o rapaz conversam sobre os demônios interiores e a prisão que cada um traz consigo ao nascer e da qual não consegue se libertar. Após o jantar, ela entra no quarto e decide retornar ao ponto de partida ao amanhecer, logo depois de descansar. A arrependida Marion redime o espectador/ladrão no momento em que resolve voltar e devolver o dinheiro roubado, quebrando, assim, a grade da sua “prisão particular”. Só não contava que esse redentor amanhecer jamais chegasse.
A dificuldade de Norman em aceitar os próprios desejos é evidenciado desde o momento em que o rapaz conhece Marion Crane. O desejo recalcado e platônico que sente por ela, e o medo de estar traindo a mãe, faz com que ele comece a espionar a hóspede através de um buraco na parede do escritório onde os dois jantaram e que, providencialmente, dá para o quarto da moça. Essa cena, Norman com o rosto colado na parede e o olho espiando pelo buraco, é uma das metáforas usadas por Hitchcock para explicitar a condição de voyer do espectador de cinema. Tomando o lugar do olho de Norman, o espectador vê aproximar-se o momento frustrado no início do filme: Marion Crane vai se despir. Para desespero do espectador, outro gozo interrompido. Ela revela só a sex lingerie negra.
A sequencia seguinte originou o banho de chuveiro mais aterrorizante da história do cinema, copiado de diversas maneiras, mas nunca com o mesmo resultado e impacto do filme de 1960. Desde os mínimos detalhes, a sequência do assassinato de Marion Crane na ducha foi construído para surpreender e apavorar o espectador. Desde a escolha da música, dobradinha infalível Hermann/Hitchcock, cujas variações da mesma nota parecem determinar a velocidade das 49 facadas, até a técnica de filmagem, imortalizaram as cenas que se seguem:
Um primeiro plano de Marion, de costas, deixando cair o robe, mostra apenas um par de pernas que entra na banheira. Close no chuveiro e a água começa a jorrar sobre o corpo da moça, do qual vemos apenas as mãos, cabeça e ombros. Corte e a câmera mostra a porta do banheiro, enevoada através da cortina, que se abre, e de onde surge um vulto vestido de negro. A cortina é aberta e vemos a faca subir implacável. Corte para mostrar, em primeiríssimo plano, a boca de Marion Crane que se abre em um grito. Corta para o vulto e a faca, que sobe e desce incansável (como um falo em ato de penetração). Corta para um p.p. de Marion aterrorizada.
A câmera desce lentamente, mas não tão lentamente a ponto de enfatizar a anatomia do corpo nu, e o sangue escorre pelos pés da vítima. O vulto desaparece com a mesma rapidez sobrenatural com que apareceu e um close mostra Marion, agonizante, deixando o corpo escorregar pela parede. Corta, a mão dela tenta apoiar-se na cortina, que rasga. Outro corte e a câmera em close up focaliza a ducha de onde a água jorra purificadora. Um travelling acompanha o sangue escorrendo pelo ralo. Um plano de detalhe no ralo e em um corte preciso, tanto quanto era possível com a tecnologia da época, este se transforma no olho aberto – e morto – de Marion Crane. A câmera se afasta lentamente em um travelling para trás até deixar ver o rosto em p.p, daí, passeia pelo quarto e mostra a mala sobre a cama e o jornal de Los Angeles, sobre o criado-mudo, dentro do qual ela havia escondido os US$ 40 mil roubados e para onde o último olhar da moça parece convergir.
...continua nesta quinta-feira
Veja a cena em vídeo resgatado no Youtube. Lluxo de que eu não dispunha na época da graduação. Na ocasião, resolvi o problema de mostrar para minha banca examinadora as sequências analisadas, copiando esse trecho de Psicose, junto com quatro cenas inesquecíveis dos filmes abordados no projeto, em VHS. Deu o maior orgulho, uns dois anos depois de formada, encontrar meu professor, numa sala de cinema, e ele me dizer que usou a fita para dar aula para sua nova turma de crítica cinematográfica.