Fragmentos de um cotidiano cinza

Da série Levando Um Choque Por Dia

Cena 1: As empresas de ônibus de Salvador possuem um nível de desrespeito com os usuários do sistema que beira o inacreditável. No bairro onde moro (profissional liberal pobre, sem carro, anda de buzu, como se diz aqui na soterópolis), é carente de linhas de transporte coletivo. Não temos metrô, como é público, notório e motivo de piada nacional, inclusive, são apenas cinco opções de ônibus no meu bairro. Detalhe: a região onde moro é considerada a mais densamente povoada da capital. Para ir trabalhar tenho apenas uma linha ao dispor. O tal “ônibus de horário” não passou no horário, atrasou módicos 50 minutos. Foi muito instrutivo passar todo esse tempo debatendo a questão do desrespeito de empresários e poder público com todos os outros trabalhadores, que como eu, tiveram de bater o cartão com atraso nesta terça-feira. A dureza é convencer o chefe de que a culpa é da prefeitura!

Cena 2: Caixa eletrônico de uma agência bancária situada no interior do maior shopping center da cidade. A fila dos jovens (minha fila, ainda!) estava relativamente robusta. A dos idosos, com umas seis pessoas. Três caixas para nós, dois para a turma da melhor idade. Vaga um dos caixas dos idosos. Um jovem, desatento, faz menção de aproximar-se, quando um dos idosos protesta, com razão, afinal é lei: “este caixa é nosso, moço. A fila de vocês é a outra”. O moço se afasta, volta para a fila dos que tem mais tempo de vida e mais força nas pernas para aguardar a vez. Um cidadão, ar truculento, visivelmente cara de quem bate na mulher para se exercitar, encrenca com o idoso que chamou a atenção do rapazinho. Chuva de impropérios e gestos impublicáveis sobre um homem que tinha idade de ser o pai do troglodita, senão um avô. Gratuitamente, agressão desmedida e sem sentido. O idoso ofendido pede socorro ao segurança do shopping, mas tal qual as empresas do sistema de transporte coletivo de Salvador, a ineficiência é inacreditável. O idoso, ainda sob uma chuva de palavrões, chama a gerente da agência, que passa pela porta giratória com ar de quem não tem nada com isso. O que me chocou na cena nem foram a atitude do “segurança” do shopping, muito hábil para espantar – e espancar – os “meninos em risco social” dos corredores dos magazines, mas incapaz de enfrentar um troglodita que só faltou partir para as vias de fato e ameaçava um homem velho; ou mesmo a da gerente, tentando botar paninho quente na situação para evitar um escândalo maior e, quem sabe, a câmera de um papparazzo, o bloquinho (ou gravador) nervoso de um repórter. O que me chocou foi ver que na fila dos “jovens” todos pareciam nascidos de chocadeira, pessoas sem pai, nem mãe, e que, provavelmente, vão todas morrer cedo, coitadinhas, pois se olhassem para o futuro, veriam-se na outra fila num prazo de 20, 30 anos, no máximo. Ver e ouvir aquela gente toda raivosa, frustrada e ressentida endossando as palavras do troglodita e tirando a razão do idoso que só queria exercer seu direito legalmente constituído, me fez, mais uma vez, entender que a humanidade não tem jeito. As feras estão soltas e completamente loucas, babando e cuspindo umas nas caras das outras. Vivemos o salve-se quem puder. Calce as luvas e entre no ringue, bata também ou leve na cara. Lastimável, mas é real. O que eu vi hoje foi “bullying” (assédio) praticado contra uma pessoa no estágio mais frágil da vida. Bebês também são frágeis, diria um leitor mais atento. De fato, mas estes, na maioria dos casos, ainda têm suas mães para tal qual leoas, voarem na jugular de quem os ameace. Um idoso, ao contrário, é vulnerável até dentro de casa, porque duvido que o troglodita escandaloso do shopping trate os pais de forma melhor do que tratou o velho na fila. Isso se também não nasceu de chocadeira!

P.S.: Prometo posts mais amenos, mas a semana começou hard core.

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4 pensamentos sobre “Fragmentos de um cotidiano cinza

  1. lamentável que tenhamos que presenciar episódios como estes que relata, andreia. pessoas deseducadas, grosseiras e sem-noção são para estragar o dia mesmo.

  2. Polícia e “seguranças”, de modo geral, Andreia, só existem, no Brasil, pra defender o patrimônio. A vida humana, especialmente a dos idosos, que já não produzem e por isso descartáveis, não vale nada.

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