Três anos depois, mais um filme para a minha lista. Senhores do Crime (Eastern Promisses, David Cronemberg, 2007). Como é impossível ficar indiferente, me arrisco a refletir sobre este requiem para a “solidariedade bandida”. Muita gente já fez isso quando o filme foi lançado nos cinemas, em 2007, e o ator principal, inclusive, disputou o Oscar, em 2008. Mas preciso meter a colher e deixar registradas no blog as minhas impressões tardias…
Igualmente impossível é ficar indiferente a força do personagem de Viggo Mortensen nesta produção que, tal qual o recente A Estrada, mostram que o ator dinamarquês-americano tem muito mais cartas na manga para mostrar, além do célebre Aragorn da Trilogia O Senhor dos Anéis. Aliás, justiça seja feita, de Aragorn para cá, ele só emplaca bons personagens. Um divisor de águas, sem dúvida, mas que pouco efeito surtiria se o ator não tivesse o talento que tem. Pessoalmente, achei injusto não ter levado a estatueta em 2008. A concorrência era boa: Daniel Day-Lewis (Sangue Negro) Tommy Lee Jones (No vale das sombras), George Clooney (Conduta de Risco) e para compor, Johnny Depp (Sweeney Todd). Dos cinco, Viggo era quem mais merecia o prêmio, pela entrega total feita ao personagem e pela credibilidade passada a partir de uma interpretação que concilia momentos viscerais com outros de puro cinismo.
Senhores do Crime, para quem, assim como eu, vive correndo atrás de colocar a filmografia em dia, é ambientado em Londres e trata das intrincadas relações de lealdade da máfia russa, igualmente intrincadas relações de lealdade e afeto entre os homens (no sentido biológico e não filosófico). O tráfico de mulheres, descoberto inadvertidamente pela enfermeira bem-intencionada vivida por Naomi Watts após socorrer uma jovem prostituta na hora do parto, é só o pano de fundo para o diretor compor uma “missa fúnebre” sobre a vida bandida, a violência e a sexualidade masculina. Não à toa, Kirill (Vincent Cassel em interpretação inspirada), filho do chefão mafioso, vive a angústia de manter-se no armário, enquanto o seu “motorista” e espécie de guarda-costas, Nikolai (o personagem de Viggo) não é menos ambíguo tanto na sexualidade, quanto nas motivações para pertencer à elite do crime.
Na máfia, o preconceito de gênero extrapola os limites entre os homens (heterossexuais) e as mulheres (elas são mero objeto) e adquire contornos dramáticos quando atinge os membros da “fraternidade”. Paradoxalmente, a relação dos “irmãos” no crime alcança a mesma homoafetividade vista por exemplo, no futebol. E mais uma vez, não à toa, um dos jovens iniciandos é morto na saída de um jogo do Chelsea, em meio a toda aquela empolgação de uma torcida majoritariamente masculina.
Como o título em português sugere, é de fato um filme masculino. As mulheres, seja Anna (Naomi), sua mãe, as jovens forçadas à prostituição e ao uso de drogas, ou mesmo a bebezinha que a enfermeira tenta salvar a todo custo, não passam de coadjuvantes em um palco dominado pela testosterona em seu estado mais puro e selvagem. Cronemberg mostra um mundo dominado pela força bruta, regido pela ótica do macho dominante, do mais forte prevalecendo sobre o mais fraco, cheio de regras de conduta e promessas de lealdade que compõem a tal solidariedade bandida. O apadrinhamento do líder, a obediência cega dos afilhados, que em certa medida lembra Mário Puzzo e O Poderoso Chefão, são os elementos em destaque. Só que, diferentemente do drama mezzo glamouroso vivido por uma família do crime italiana, esse é mais cru, mais frio, mais implacável e cinzento, tal qual a atmosfera de chuva constante em Londres. Sem contar que existe toda a carga “política” envolvida. A cortina de ferro desfeita, a brutalidade da KGB, que se equivale a dos mafiosos, as superstições e a religiosidade exacerbada dos russos, as brigas étnicas no leste europeu, o racismo e a homofobia, todo esse cenário fica subentendido e contribui para tornar o filme tão impactante.
Espécie de anjo da guarda às avessas, Nikolai testemunha esse mundo coalhado de idiossincrasias. Ninguém sabe quem é e nem de onde veio esse misterioso homem, com seu corpo coberto de tatuagens e uma expressão de esfinge. O filme já começa com ele exercendo suas funções como subalterno do príncipe mafioso (Kirill) e ao mesmo tempo demonstrando a ambição para chegar ao nível do rei, Seymour, o pai de Kirill e chefe da facção inglesa da máfia russa.
Coroando tudo, uma fotografia que tem tanto de bela quanto de angustiante. As cores e a luz, bem como as tomadas, os cortes e os enquadramento de câmera são trabalhados de forma a enfatizar que não se trata de uma história de amor e muito menos de uma visão amena da Europa remanescente da queda do muro de Berlim e do eterno conflito entre ocidente e oriente. Até mesmo o flerte insinuado entre Nikolai e Anna, a quem ele passa a ajudar secretamente, não deixa de sofrer o peso da opressão suspensa na atmosfera. Não há lugar para o idílio na vida bandida.
A cena que condensa a aliança beirando a perfeição entre técnica e narrativa neste filme de Cronemberg (que se resolve bem em cerca de uma hora e quarenta, timing que não deixa faltar e nem sobrar nada e nem concessões à emotividade), é a emblemática luta na sauna. Mas não apenas ela. A minha sensação é de que o filme caminha tanto na direção desta cena quanto na de uma outra, que tem a mesma força, se não for mais forte: o teste de aptidão para que Nikolai seja aceito na elite da máfia. Há ainda uma terceira, que pensando bem, supera as duas demais. Trata-se também de um teste, desta vez de virilidade.
No primeiro caso, a vulnerabilidade da condição humana em meio a um mundo que se desintegra, a vulnerabilidade da condição de ator, “gado” como dizia o mestre Hitchcock (que se submete a uma superexposição), a vulnerabilidade pela opção de uma vida de crimes, na falta de outra perspectiva. Tudo isso reflete-se na acirrada tentativa de sobreviver a um atentado em que a vítima, completamente nua (Viggo Mortensen gravou como veio ao mundo) luta corpo a corpo com dois brutamontes armados. Entre socos, facadas e muito sangue, a plástica do corpo nu e delgado, magro (para os padrões dos heróis de cinema) e beirando os 50 anos do ator (na época das gravações ele estava com 49) leva a um enternecimento, a quase piedade, que nem de longe remete ao desejo sexual, mas antes lembra a luta da criança na hora de nascer. No entanto, sem esconder que ali, nu, está um homem ainda na flor da idade, ainda vivo, ainda “viril” e capaz de defender-se com as próprias mãos. Querem mais testosterona que isso?
No segundo exemplo, também semi nu (só de cuecas), Nikolai precisa passar por um sabatina entre os chefões, renegar o pai biológico e as memórias de sua vida anterior, para só depois jurar fidelidade cega e extrema, primeiro ao seu novo pai (Seymour) e depois ao código de conduta da nova “família”. Extremamente plástica e sutil é a sequencia seguinte, em que uma vez aceito na elite mafiosa, o ex-soldado ganha suas estrelas e condecorações, marcadas na base da agulha e da tinta na própria carne.
Mas é a terceira das cenas citadas, até pela minha condição de mulher, que toca mais fundo. Kirill, cuja sexualidade é posta em xeque o tempo inteiro pelo patriarca, quer de Nikolai uma prova de masculinidade. Num bordel, manda o ainda subordinado aspirante a mafioso estuprar uma das prostitutas mantidas por seu pai. Freud, certamente, explica a revolta e a tentativa de punição contra a figura paterna, usando um outro (falo) como instrumento de castigo. E Foucalt se deliciaria em igualmente explicar o perverso jogo de poder envolvido na questão do capitão que manda o soldado fazer “o trabalho sujo”. A carga dramática da cena se equivale à tensão erótica criada pelo olhar de admiração de Kirill para o corpo do seu soldado (deixando claro que ele o deseja), enquanto Nikolai, obedientemente, mas não sem uma certa revolta, cumpre as ordens. Vista de outro ângulo, a cena mostra ainda a força bruta de um homem (Nikolai) exercida sobre o corpo feminino e vulnerável da prostituta.
Li uma vez uma crítica sobre Senhores do Crime, em que o autor enfatizava o pessimismo do filme. De fato, é uma visão amarga da condição humana, mas discordo que seja pessimista. Embora, como diz Anna, explicando sua profissão de enfermeira parteira para Nikolai: “nascimento e morte caminham juntos em alguns momentos”, um não supera o outro. Antes, são dois extremos dessa mesma condição “vulnerável” que implica em “ser” humano. A cena final com o bebê, no entanto, é prova suficiente, ao menos para um olhar feminino, de que apesar dos pesares, existe esperança.
Também dicordo, como você, Andreia, que qualquer visão amarga da condição humana seja pessimista. Acho que é a partir do gosto amargo da vida que alguns rebeldes lutam pelo “Gosto de Cereja” que a vida tem.
Obs: Gosto de cereja, pra quem não sabe, é título de um lindíssimo filme de Abbas Kiarostami. Vale a pena ver
Vou procurar esse para assistir. Valeu a dica, Beto. Beijão!