Duas leituras recentes de obras recentes de José Saramago: A viagem do elefante e Caim. Por se tratarem de dois “road books“, decidi unir as duas interpretações em um único texto. Academicamente falando: propus um diálogo entre Salomão e Caim…
“On the road” com Salomão e Caim
Andreia Santana
Coloquei o alforje a tiracolo, calcei o par de botinas mais resistente, arrumei um cajado, para apoiar o corpo cansado e segui no encalço de Salomão por meia Europa. Sofri a fome e o calor. Também tiritei de frio na travessia dos Alpes. Após matar um irmão e receber uma marca na testa, errei por vários mundos, ao léu, como proscrito filho de Adão e Eva… Acredito que não tenha sido a única, pois é quase impossível ler A Viagem do Elefante ou Caim, obras de José Saramago, lançadas, respectivamente, em 2008 e 2009, sem percorrer palmo a palmo dos caminhos destes personagens: um paquiderme indiano, presente de D. João III para Maximiliano, arquiduque de Áustria; e Caim, o condenado fratricida que só mesmo pelas palavras do autor português poderia ser redimido de seus pecados.
Se fossem roteirizados, A Viagem do Elefante e Caim dariam ótimos road movies. Os dois livros descrevem jornadas quase épicas e possuem os elementos caros aos “filmes de estrada”. Em cada canto do mundo, Caim e Salomão (não a toa batizado com o nome de um “rei bíblico”) conhecem um pouco mais da humanidade, no que isso tem de bom e de ruim. No caso do elefante, é com indiferença que ele assiste ao duelo de vontades dos dois reis que dispuseram de tão nobre criatura como um mimo e símbolo de diplomacia transcontinental.
Para dizer a verdade, a ideia é bem exótica e passaria fácil por um artifício da ficção, se não fosse baseada num fato histórico verídico. De fato, o rei português ofereceu um elefante de presente ao arquiduque austríaco. José Saramago, hábil escritor, mais hábil ainda como filósofo e grande conhecedor da alma humana, apenas botou um pouco mais de tinta colorida na descrição de uma viagem que deve ter sido por si só, nos idos do século XVI, um acontecimento dos mais inusitados.
Já a história de Caim, cá entre nós, ficou infinitamente mais saborosa na pena do autor do que da forma que nos é apresentada na bíblia. O escritor, ateu convicto e praticante, utiliza-se do amaldiçoado personagem para rever o Velho Testamento e os desmandos do vingativo Deus descrito nos livros bíblicos. Se o Jesus do Novo Testamento é um sujeito do bem, pregando a união entre os homens, o perdão e a solidariedade; em contrapartida, o Deus de Moisés e Abraão é de meter medo. Se Caim é o assassino de Abel, Deus foi o mandante, ao menos na visão de Saramago.

Esse aí não é o Salomão do livro, “embaixador” de D. João III na corte austríaca. Mas, pela descrição do “elefante diplomata”, pode até ser um irmão gêmeo
Os dois livros, embora situados em épocas distintas e com personagens diferentes, se assemelham no uso da metáfora da estrada enquanto lugar de purgação. Duas jornadas árduas que conduzem a uma revisão histórica e bíblica, uma espécie de passar a limpo a presença humana neste mundo. Melhor dizendo, uma revisão de palavras, porque não somos nada mais que palavras reunidas e contextualizadas em um sentido ou em outro. O que seríamos sem as palavras? São elas que nos dão significado.
Característica marcante das obras de Saramago, a ironia também está presente na narrativa tanto da viagem de Salomão rumo à corte de Maximiliano, quanto na jornada de Caim, em cumprimento a maldição divina. Mas, ao contrário de outras obras mais dramáticas do autor, onde a ironia revela o choque em descobrir as mazelas humanas (Ensaio Sobre a Cegueira e A Caverna, por exemplo), desta vez, ela vem acompanhada de doses generosas de humor. Beira a comédia pastelão a hilária descrição do confronto entre as guarnições portuguesa e austríaca para decidir quem vai transportar o elefante pelas geleiras alpinas.
Salomão e seu cornaca (tratador) não compreendem o mundo ocidental onde estão inseridos e muito menos possuem grandes expectativas sobre a nova vida em Áustria. Boa parte da viagem, o cornaca (uma espécie de alter-ego do elefante) dedica a relembrar a vida de ostracismo em Lisboa, temendo que destino semelhante os aguarde no novo lar. A verdade é que o tratador de elefantes não vê muito sentido na troca de presentes esdrúxula entre os dois soberanos. No fim das contas, conclui: – não exatamente com essas palavras – “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Enquanto isso, Caim, pulando por fissuras no tempo e no espaço, como um cosmonauta dos tempos remotos, gravita em torno das histórias bíblicas e inicia uma espécie de duelo com Deus, culminando com a descrença total na bondade do ser supremo. É interessante perceber que a bíblia é um dos principais símbolos e sínteses da cultura judaico-cristã, que por sua vez, vai originar os reinos europeus que tanta surpresa causam ao cornaca e ao seu elefante andarilho.
É como se, apesar de A Viagem do Elefante ter sido lançado primeiro, a jornada de Caim, seus questionamentos e o choque perante a crueldade do Deus de Moysés (que afinal de contas, calcinou até as crianças ao punir Sodoma e Gomorra), dos homens e daqueles tempos supersticiosos, fosse o prenúncio das andanças de Salomão e dos choques culturais que o paquiderme e seu cornaca enfrentariam na sua trajetória.
No fim das contas, percorrer os caminhos do elefante ou do filho condenado de Adão e Eva é revisar nossos mitos, medos e crenças, passando a limpo a civilização ocidental e suas idiossincrasias.
Uma sinopse para cada obra:
A viagem do Elefante – O livro, baseado em fatos verídicos, conta a história da jornada épica do elefante Salomão, um exemplar das colônias lusas na Índia, pertencente ao rei de Portugal, D. João III, que é oferecido como presente de casamento ao arquiduque e futuro imperador austríaco Maximiliano. O elefante atravessa meia Europa, seguido de uma exótica caravana composta por soldados, carros de boi e trabalhadores braçais, e em cada parada do caminho, o autor nos brinda com seu profundo conhecimento das motivações que dão sentido à existência deste pequeno animal bípede (comparando com os quatro metros de altura de um elefante) chamado homem.
Caim – Neste livro, José Saramago se predispõe a escrever um suposto capítulo na bíblia, uma espécie de “evangelho apócrifo”, ou melhor, “capítulo apócrifo do Gênese”, sobre o destino de Caim, o filho de Adão e Eva, que por inveja, matou o irmão Abel (o preferido de Deus). Marcado pela ira divina, Caim é condenado a errar pelo mundo e pelas eras, testemunhando boa parte das histórias do Velho Testamento (A Torre de Babel, A queda de Sodoma e Gomorra, o sacrifício de Abrãao e o dilúvio enfrentado por Noé). Ao longo de sua trajetória, Caim questiona Deus que, por sua vez, nem sempre consegue dar respostas satisfatórias.
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Para entender a importância dos livros apócrifos do antigo testamento na igreja primitiva visita… http://www.aigrejaprimitiva.com/dicionario/apocrifos.html
Olá, valeu a dica! Mas a intenção do post não é discutir religião e sim falar de José Saramago e de duas de suas obras, que aliás são totalmente iconoclastas: Caim e A Viagem do Elefante. É uma análise literária, sem nenhum tipo de interesse em catequese. Mas, se houver algum leitor do blog interessado, fica aí a sua dica…Abs!