Mistérios de Fanny
Fanny é uma protagonista irritante, sem dúvida. Não é audaciosa, ao contrário, é covarde, submissa, ingênua. Ao menos, essa é a primeira impressão ao ler Mansfield Park: que Fanny não passa da avó da Polianna. No entanto, na medida em que o livro avança, a jogada de gênio de Jane Austen fica mais clara. Fanny é uma boa moça, sem dúvida, para os padrões do século XIX, mas tem seus momentos de “maus pensamentos”. É implacável no julgamento dos outros, não faz concessões, tem seus desafetos, permite-se sentir inveja dos que estão em melhor situação que a sua. Morando de favor na casa dos tios ricos, para onde foi levada aos 12 anos, se humilha porque acredita que deve manter-se em seu lugar, mas guarda ressentimentos (é humana afinal!). Equilibra-se a um passo entre a santidade e a amargura e é isto que faz dela uma personagem tão estimulante.
Através da “doce” Fanny, Jane Austen consegue reunir diversos conflitos da alma humana numa única pessoa. Apesar da atividade frequente, Fanny é indolente, pois tem preguiça (mais do que medo) de encarar sua vida e dissabores de frente, ela prefere arrumar desculpas convenientes para as desditas. Prefere acomodar-se na posição do patinho feio da família. Age na sombra, influencia a todos sem que eles percebam que estão sendo influenciados.

Fanny e o primo Edmund. Agora sim, cena de Mansfield Park – Palácio das Ilusões, produção americana de 1999 inspirada na obra de Jane Austen. Ainda não vi o filme, mas fiquei muito curiosa, aproveitarei as férias para caçar o DVD. Crédito da imagem: “Lights Camera History – all about period dramas”
Ao longo das mais de 300 páginas, nós leitores somos levados a amar Fanny profundamente e a odiá-la com todas as forças por ela ser tão patética. Não conseguimos compreender porque ela aguenta as maldades da tia Norris, uma viúva amarga e cruel; ou porque se submete a ser a escrava de luxo de sua tia Bertram, uma matrona tolinha, leviana e completamente subjugada pelo marido.
Lady Bertram acomoda-se na posição de grande dama e não emite uma única opinião sem que consulte Sir Thomas, sem que ele lhe diga o que é e o que não é adequado. Acostumada que decidam tudo por ela, passa os dias bordando sentada no sofá, com um cachorrinho no colo. Com essa personagem, Austen descreve exatamente o que era uma “mulher bibelô” naqueles tempos em que a beleza física era o maior atributo de mulheres que serviam apenas de adorno e objeto sexual.
Todos os personagens de Mansfield Park trazem em si as controvérsias de ser humano. O bom vivant Henry mostra-se capaz de atos de grande cavalheirismo, mas como o escorpião, não consegue fugir da sua própria “natureza”; enquanto o cavalheiro, quase padre, Edmund, é capaz de entregar-se à maledicência e ao julgamento pelas aparências. Não são raras as passagens em que ele e a prima Fanny entregam-se com prazer à arte de falar mal das atitudes alheias. Já a leviana Mary divide-se entre o desejo de dar o golpe do baú e o de ser livre, de ter o direito de pensar por conta própria. Liberdade e mulher eram palavras mais que opostas no século XIX e através de Mary Crawford, a autora mostra o quanto era difícil fugir do script traçado pela cultura e educação recebidas.

Outra adaptação de Mansfield Park, desta vez para a BBC, em 2007. Crédito da imagem: “Lights Camera History – all about period dramas”
A autora britânica critica o jogo de aparências em todas as suas obras, mas nesta, mostra uma sociedade inteiramente construída sobre a imagem projetada e as expectativas sociais. Não é à toa que projetos vivem sendo frustrados, porque ninguém age em Mansfield Park sem lançar mão da dissimulação. Fanny mais que todos, faz da dissimulação uma arma poderosa de sobrevivência.
Mansfield Park foi publicado em 1814, quando Jane Austen estava com 39 anos. É um dos livros mais intrigantes da autora, embora eu considere inferior a Razão e Sensibilidade, por exemplo, e anos luz da obra-prima dela, Orgulho e Preconceito (estou apaixonada por este livro e por Elisabeth Bennet, a melhor heroína da escritora, sem sombra de dúvida!).
O que desafia em Mansfield é justamente o caráter de Fanny, a cada página ela se revela de uma forma. Seu retorno para casa, após ser criada na mansão dos tios, e o desprezo que parece nutrir pela própria família, considerada pobre e mal-educada, dizem muito mais sobre seu caráter do que qualquer outra passagem do livro.
Esta é a obra de Jane Austen considerada a mais autobiográfica. O universo da autora descreve o cotidiano da sua infância e juventude (ela morreu aos 42 anos, relativamente jovem), da Inglaterra rural e o mundo das ‘caçadoras de marido’, dos dotes, dos contratos de casamento, das convenções sociais e da dissimulação. Mas Mansfield Park pode ser considerado o tratado de Austen sobre o ato de dissimular e talvez seja o livro onde ela menos usa o humor e mais se entrega a amarga decepção de constatar que o seu mundo era uma prisão de grades douradas.
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Mais leituras de Jane Austen:
Comprei esse livro hoje, me apaixonei pela capa e quando li que era uma obra de Jane Austen, não consegui sair da livraria sem compra-lo. Comprei o livro em inglês, acredito que eu possa vir a ter um pouco de dificuldade em ler algumas partes, mas, acho que vou unir o util ao agradavel. Vou me aprofundar mais no inglês e ler um livro que deve ser muito bom. Estou na metade do livro Orgulho e Preconceiro, e pelo que li aaté agora, será um dos meus livros favoritos! Parabens pelo blog, vou visitar com frequencia. Um beijo.
Oi Bianca,
Tenho certeza de que a leitura de Orgulho e Preconceito será uma experiência inesquecível e Mansfield Park também é muito bom. Quanto à dificuldade com o inglês, não faça disso um obstáculo, dificuldades existem é para ser superadas. Boa sorte!
Oi Andreia,
Parabéns pelo blog tão informativo e gostoso de ler.
Cheguei aqui pela resenha do Mansfield Park, pois acabei de colocá-lo na minha lista de leitura para 2013. Assisti ao filme de 1999 em 2012 e gostei da história, por isso o selecionei para ser o meu primeiro romance de Jane Austen. Estava pesquisando o título em português para confirmar se havia alguma tradução inusitada, mas parece que ficou com o nome original mesmo.
Voltarei mais vezes para ter outras dicas de leitura.
Feliz 2013!
Oi Rafa,
Obrigada pela visita e volte sempre que quiser. De fato, Mansfield Park não tem um título traduzido para o português porque este é o nome da mansão onde a história se passa. Espero que você goste da leitura e de Jane Austen, recomendo que não deixe de ler Orgulho e Preconceito, Emma e Razão e Sensibilidade. Abraços!
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Andreia,
tenho um lema para a pequena agregada, “Fanny, você não me engana!”
Amanhã, no meu post Gazeta de Meryton, mencionarei suas resenhas sobre Jane Austen. Pergunto: fará outros além Sense and Sensibility e Mansfield Park?
abraço, raquel
PS: a imagem acima é, de fato, do filme “Becoming Jane”.
Oi Raquel,
Obrigada pelas citações no seu post, é uma honra, até porque você é especialista em Jane Austen, eu estou engatinhando. Pretendo escrever sobre Orgulho e Preconceito (me apaixonei por este livro). Obrigada pela dica da foto, o site de cinema onde encontrei dizia ser uma cena de mansfield park e como eu estava com a cabeça povoada das imagens de fanny na sua sala leste (tiritando de frio, sem lareira, rsrsrr) acabei comprando gato por lebre. Já fiz a substituição. Um abraço!
P.S.: Adorei seu blog, estou colocando o link por aqui e com certeza, nas minhas pesquisas para aprender mais sobre Jane Austen vou visitar com frequencia.