Lobo Bobo x Lobo Mau

Se me permitem, vou meter minha colherzinha no angu e retomar o tema Lobo Mau. Ainda mais após duas cenas deste Carnaval, que para variar, me deram muito o que pensar. Cena 1: Gilberto Gil, perguntado por uma repórter sobre sua opinião em relação à polêmica em torno do pagode Lobo Mau, respondeu prontamente: “mas a Chapeuzinho da música não pode ser uma mulher adulta?” Poder, pode, Gil, mas vamos analisar a situação um pouquinho mais a fundo, para ver porque a ambiguidade da letra leva a um outro tipo de conclusão quanto à idade de Chapeuzinho. Cena 2: Ivete Sangalo, para dar um cala boca nas críticas quanto a sua defesa ao Lobo Mau, resolve atacar de Lobo Bobo, no melhor estilo bossanovista de João Gilberto. Sem querer – até porque não me conhece – a cantora me deu o gancho para este post e para a análise que eu estava pensando em fazer, com a paciência e a cumplicidade de vocês, leitores. Para botar mais farinha no angu, fui ao “São Google de todas as letras de música” e resgatei o Lobo Mau do rei Roberto Carlos, aquela canção em que ele diz, todo convencido, que é o tal porque todas as garotas o querem ter.

Fábulas Os contos de fadas não foram escritos originalmente para crianças e só numa época mais recente foram incorporados ao folclore infantil, como forma de educar, primeiro pelo medo, depois pelos bons exemplos. Fábulas, desde que surgiram – e o homem é o único animal capaz de contar histórias – sempre tiveram fundo moral. E também, sempre retrataram os costumes do seu tempo. E houve, de fato, um tempo em que as meninas casavam aos 12, 13 anos (mal acabavam de menstruar). Era pedofilia naquela época? Para a sociedade do período, provavelmente não, porque se ela menstrua, pode conceber, e como a expectativa de vida até o século XIX eram os 40 anos, quanto mais cedo nossas bisavós casassem, mais cedo perpetuariam a espécie. Era cruel? Com certeza. Não havia o ECA, não havia as leis de proteção à infância, sequer havia o conceito de infância, então, quem defendia aquelas meninas do lobo mau, até que elas chegassem virgens ao casamento? As fábulas. Tinham de ser assustadoras, mórbidas (tem algo mais mórbido do que uma menina beber o sangue e comer a carne de alguém, ser estuprada e depois devorada pelo lobo?). A sexualidade latente daquelas meninas sofria forte vigilância: da igreja, dos pais, até das histórias que deveriam entretê-las nos salões. Controle social, essa era também a função das fábulas. As meninas escapavam do lobo mau, do sedutor de ocasião, mas tornavam-se prisioneiras dos casamentos arranjados. Pariam até não mais poder, morriam antes dos 30 e tinham cumprido sua função na natureza. Mas os tempos são outros e vivemos uma época em que a infância existe há tempo suficiente para entendermos que aquela criatura não é um adulto miniaturizado, é uma criança, que precisa ser preparada para a vida, ter seu sentimento de confiança básica reforçado. E vivemos também em um tempo em que adultos de mente pervertida (eles sempre existiram, mas saíram das alcovas onde se escondiam), abusam da confiança de crianças muito menores do que os 12 ou 13 anos das nossas avós-noivas-meninas. Então, há que se ter um certo cuidado com o que se coloca nas ruas, na mídia, ao alcance da gurizada.

Fetiche Santa, a humanidade nunca foi. E o sexo e o erotismo sempre fizeram parte do nosso show. Chapeuzinho Vermelho, claro, assim como diversas outras histórias e fábulas antigas, ainda hoje, servem tanto às crianças, em suas versões atenuadas, quanto aos adultos, nas versões picantes, que apimentam a transa. Entre adultos, desde que haja consentimento dos dois ou dos quantos estejam envolvidos (senão também é violência), cada um pode incorporar o avatar que bem entender e a sua fantasia, pudores, tabus e recalques permitirem. O lobo mau está para os homens, enquanto personagem (avatar) preferido nas brincadeiras sexuais, da mesma forma que as fadas e princesas estão para o imaginário feminino. Que uma mulher adulta queira bancar a Chapeuzinho e que ela decida se vai compartilhar um banquete com o seu lobão ou apenas virar o jantarzinho delivery dele, é decisão dela. Pode até inverter os papeis, ela pode ser a loba que vai jantar um rapaz incauto, que também tem direito de decidir se quer apenas ser predado por uma loba faminta ou se quer “algo mais sério”. Entre adultos, repito, com consentimento de todos os envolvidos e com as regras do joguinho bem claras, vale tudo.

Roberto Carlos, lobo playboy da jovem-guarda

Mas, criança não tem nenhuma relação com isso. Embora a nossa sexualidade comece a ser definida na infância, como a psicologia já provou por A mais B, o sexo ainda não é uma informação que somos capazes de assimilar e digerir em tenra idade, muito menos com um adulto. Cenas eróticas não são compreendidas por uma criança da mesma forma que por um adulto (falta repertório de vida, inclusive, para quem acabou de estrear no mundo, em comparação com quem já viu e viveu de um tudo). O avatar infantil não é nem de longe o mesmo de um adulto. O significado que uma mulher atribui ao lobo e à chapeuzinho é diferente do significado que uma menina vai atribuir. Um exemplo pessoal: Quando eu tinha uns 7 anos mais ou menos, vi na TV um filme, daqueles antigos clássicos de Hollywood dos anos 50 e 60, que costumavam reprisar na sessão da tarde. Não lembro o nome e nem o diretor, mas lembro que havia uma adolescente e um homem adulto, ambos viviam em um circo. A adolescente era apaixonada pelo homem e num dos seus devaneios, sonhava com diversos contos de fadas em que ela era a princesa, ele o príncipe. Num dos sonhos, ela era a chapeuzinho e ele, o lobo. Mas, justo neste sonho (era sessão da tarde, comecinho dos anos 80, tinha criança vendo) a mãe da “chapeuzinho” impedia que ela caísse nas garras do predador. Os anos passaram, só entendi a cena anos luz mais tarde. Na época, o que fazia parte do meu imaginário era o salvamento da menina e de sua avó pelo caçador bonzinho e a punição ao lobo mau. Se eu visse o mesmo filme hoje, com certeza descobriria milhões de sentidos ocultos dos meus olhos de sete anos de idade.

E é aí que chego finalmente nas nossas canções sobre lobos. Significado, o que está oculto e o que está explícito, o que é possível de ser compreendido por uma criança e o que não é. Ainda mais que, para o bem e para o mal, as crianças de hoje já não são tão ingênuas como as da minha geração. Elas estão expostas à TV, internet e à sanha de lobos que já não andam mais ocultos como no meu tempo ou no tempo das nossas bisavós. Mais ainda, ao chegar nessas canções: O Lobo Mau da banda O Báck, defendido por Ivete Sangalo e outros cantores do axé; o Lobo Bobo bossa nova de João Gilberto e o Lobo Mau playboy de Roberto Carlos, chegamos na velha tecla do machismo, da tentativa de controlar a sexualidade feminina e da incapacidade que a nossa sociedade tem tanto de lidar com as lobas, quanto de permitir que uma mulher tenha o direito de escolher que papel ela quer desempenhar, sem necessariamente precisar categorizá-la em “moça de respeito” e “naquela que está ali justo para ser desrespeitada”. Absurdo? Mas é este pensamento que permeia, na sombra, a discussão. O lobo do O Báck não é só suspeito de pedofilia, ele com certeza carrega o ranço de macho pegador, comedor de todas, ele é o tal, igualzinho ao lobo de Roberto Carlos, só que bem menos inocente. E, para igualar o jogo, é preciso que uma mulher vista a pele do lobo, incorpore o avatar que na concepção social é totalmente masculino, o de pegador. Ivete é a loba. Girl power ou Pussy power. Muito justo, não deixa de ser uma conquista feminina ter o direito de agir feito homem. Será mesmo? Tenho minhas dúvidas sobre até que ponto isso é uma escolha ou uma conquista. Mas aí já é tema para discussões posteriores, vou amadurecer a teoria e trago para vocês.

De volta aos lobos Lendo a letra de Lobo Bobo, percebo que a historinha, embora utilize os personagens emblemáticos (lobo e chapeuzinho), claramente se refere a uma tentativa frustrada de um pegador em cantar uma mulher a quem, pelo autor da canção, é dado o direito de dizer não, ou sim. Só que ela, seguindo os conselhos da vovó, da experiência, disse não. Olha aí o consentimento mútuo para o joguinho ser gostoso! Colocando numa linguagem dos anos 60, mais ou menos época da canção, o recado é o seguinte: “lobinho é o seguinte, só vai rolar jantarzinho depois de casar”. E muitas casaram naquela época justamente porque seguraram o tchan e foram cozinhando seus lobos em banho-maria, até adestrá-los, “torná-los bobos”, ou seja, tirá-los da galinhagem e mantê-los na coleira, tal qual o lobo da canção. A virgindade das meninas era imposta e valorizada, claro, mas quem disse que elas também não usaram a pureza como artifício, como poder de barganha? Nossas avós eram bem menos inocentes úteis do que tentam nos fazer crer.

Impossível comparar o mesmo Lobo Bobo, com o Lobo Mau do O Báck. Este lobo defendido pelas estrelas do axé music, além de tratar a sua chapeuzinho como a cachorra que o seu machismo acredita piamente que ela seja – sem que tenha sido dado a ela o direito de escolher ser cachorra ou não – ainda a coloca deliberadamente no lugar de uma “menina” indefesa. A idade dessa menina é uma incógnita, pode até ter mais de 18, como diz o ex-ministro Gil, mas então, porque usar na letra um trecho da cantiga da versão infantil da Chapeuzinho Vermelho, a mesma cantiga da “merenda boa e gostosinha” que as nossas crianças cantam na escola, nas aulinhas do jardim da infância? As letras de pagode são sexistas, pelo menos de uma vertente do pagode baiano são, com toda certeza, embora não tenhamos o direito de condenar todo um estilo por causa de meia dúzia de artistas. Mas, a partir do momento que o lobo é um homem e a chapeuzinho tratada como menina na letra da música, não é só de sexismo que estamos falando, é de uma ambiguidade que flerta sim, perigosamente, com a incitação a pedofilia. Cabe, no mínimo, reflexão.

Por último, para não dizer que não falei do rei Roberto, o seu Lobo Mau é aquele rapaz que as meninas da jovem guarda chamariam de sem coração. Ele partia o de todas as moças, flertava com todas e com nenhuma, as queria disponíveis, jogava com elas, era o carinha mais gato e mais popular da escola, filhinho de papai, andando num carro envenenado, frágil, com medo terrível de mulher (misógino), medo de ser amansado e de colocarem nele a coleira que o Lobo Bobo aceita de tão bom grado porque não resistiu aos encantos da chapeuzinho de maiô. Mas, ainda assim, todos os brotos da letra de Roberto parecem ter idade suficiente para dizer não às suas investidas, se essa for a vontade delas.

Um pensamento sobre “Lobo Bobo x Lobo Mau

  1. Muy buena reseña, estuve escuchando y tocando ésta canción. Cuando me adentre en un analisis reflexivo de la letra, fuera de la musica, me encontré con muchos interrogantes, interesante opinion. El asunto del genero y las estructuras patriarcales están presente en muchísimas expresiones musicales.

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