Aos 71 anos, Roald Dahl era um autor em plena atividade literária. Na entrevista que deu ao jornalista britânico Todd McCormack, em 1987, três anos antes de sua morte, legou à posteridade não apenas histórias engraçadas sobre como encontrou inspiração para criar seus personagens, mas deu uma aula sobre o quão complexa e ao mesmo tempo prazerosa pode ser a criação de uma história. Se você é do tipo de leitor acostumado a relatos de autores sofrendo em busca de inspiração e vivendo uma relação de amor e ódio com Melpômene (tragédia), saiba que Roald Dahl, apesar de ter vivido alguns dramas na vida pessoal, como a perda de uma filha aos sete anos por sarampo, quatro aneurismas em outro filho e o atropelamento de um terceiro (ele era pai de cinco), andava de braços dados com Talia, musa da comédia.
“Quando você está escrevendo é como percorrer um longo caminho por vales e montanhas e ver várias coisas ao mesmo tempo. Você pega essa primeira visão e escreve. Então, anda mais um pouco, sobe um morro e vê alguma coisa a mais. Você vai fazendo isso dia após dia e sempre tendo visões diferentes. A montanha mais alta do caminho, obviamente, vai apontar para o fim do livro. Parece fácil, mas é um processo muito lento, longo e requer paciência”, revelou à McCormack na célebre entrevista. No site oficial da Fundação Roald Dahl, mantida pela viúva e herdeiros, é possível ler ou ouvir toda a conversa, em inglês. Há um áudio também do escritor lendo um trecho de BGA – Bom Gigante Amigo, livro que ele escreveu em homenagem à filha Olívia, aquela que morreu de sarampo, para quem também escreveu O Fantástico Senhor Raposo.
BGA foi um dos livros escritos no “esconderijo” que ele manteve a vida toda no quintal de casa, usado com a única finalidade de mergulhar no mundo da fantasia. A rotina de trabalho do autor, ao contrário do que se possa imaginar, visto que produziu intensamente ao longo de 45 anos, nem era tão árdua. Segundo o próprio Dahl, ainda na entrevista para Todd McCormack, na criação de seus livros ele trabalhava duas horas por dia, todos os dias da semana, incluindo feriados. Para o escritor, depois de duas horas de intensa concentração, a mente começava a divagar. Autocrítico e perfeccionista, lapidava seus textos com a habilidade de um ourives e levava até um ano escrevendo uma história. Chegou a jogar fora a primeira versão de Matilda, depois de nove meses de trabalho.
A inspiração para uma bibliografia tão extensa, ele tirava da própria infância e de uma capacidade impressionante para olhar a vida pelos olhos da eterna criança que cultivava. Assim, Contos da Vizinhança é autobiográfico e narra situações vividas nos verões passados na Noruega; A Fantástica Fábrica de Chocolate foi escrito relembrando o fato de que ele e o irmão estudaram em uma escola onde todos os anos, uma fábrica de doces enviava novos produtos para serem “testados” entre os alunos; James e o Pêssego Gigante surgiu das inquietações de um Roald Dahl já adulto e intrigado com o crescimento das frutas nas árvores. “Sempre quis saber porque uma fruta crescia só até um determinado tamanho e depois parava de crescer. Ficava me perguntando o que aconteceria se ela continuasse crescendo”; enquanto Os Gremlins foi inspirado no folclore britânico, a partir de antigas histórias de diabinhos travessos que pregavam peças nos soldados da RAF (Real Força Aérea), onde serviu durante a II Guerra Mundial como piloto de bombardeiro.
Em A Fantástica Fábrica de Chocolate, Roald Dahl legou ao panteão de personagens inesquecíveis uma das figuras mais carismáticas da literatura infantil: Willy Wonka, o dono meio amalucado e totalmente excêntrico de uma fábrica de doces onde tudo é possível. Quem não queria ganhar uma barra de Delícia Crocante Wonka quando era criança? E Matilda? Não podemos esquecer dela, uma menina com talentos especiais e criada por pais completamente mesquinhos. Sem contar com o esperto Senhor Raposo fazendo um trio de fazendeiros realmente malvados de gato e sapato.
A sensação para quem não conhece o rico universo do autor é de ele exagera na caracterização das personagens, mas o próprio Dahl dizia que as cores para se pintar um quadro para uma criança tem de ser ainda mais vivas que as cores reais. Sendo que ele nunca subestimava a inteligência de seu público. Se alguém é mau nas suas histórias, é realmente péssimo; um gigante bonzinho, é tão bom que até cansa; uma menina inteligente como Matilda, bota Einstein no bolso.
Esse exagero todo porém, nem de longe descamba para o piegas. Textos simples, fáceis de ler, mas de uma complexidade de relações e situações que muitas vezes só a lógica infantil de pular de uma brincadeira para a outra em questão de minutos é capaz de dar conta. A singeleza das histórias do autor faz os leitores pensarem: Poxa, isso aqui é tão fácil, porque não imaginei isso antes! Ao mesmo tempo, o maravilhoso, o irrealizável, como um menino ser esticado numa máquina de chicletes para voltar a crescer depois de ser miniaturizado, torna-se completamente possível no seu mundo.
Poucos autores contemporâneos conseguem escrever com a clareza e a lucidez de Roald Dahl e ao mesmo tempo manterem aquele bom suspense do começo ao clímax da história. Econômico nas palavras, pouco afeito às descrições desnecessárias, completamente lúdico, o que transparece nos textos do autor é que ele era alguém capaz de rolar de rir das próprias piadas, daí sua facilidade em fazer rir. Com um pouco de boa vontade dá para imaginá-lo trancado no seu esconderijo, duas horas por dia, divertindo-se muito com cada nova reviravolta de suas tramas.
Ao mesmo tempo, ele também foi autor de sucesso entre o público adulto, para quem escrevia contos intensos, viscerais, explorando o lado mais sinistro da natureza humana. Beijo (uma das poucas obras para adultos publicadas no Brasil) é uma coletânea de contos que reúne 11 dessas narrativas sombrias que revelam uma outra vertente do escritor.
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Andreia,
ótimo texto,
ótimo blog ;)
Oi Santiago, obrigada e bem-vindo :)