Por uma Salvador para além de “Ó Paí Ó”

opaio

Tenho uma pequena obssessão pelos relatos sobre Salvador deixados pelos cronistas que por aqui desembarcaram entre os século XVI (após o “achamento” do Brasil) e o século XIX (pouco depois da abolição). Esses viajantes europeus, boa parte deles bem nascidos, brancos, alguns até de famílias reais ilustres, alguns aventureiros sem eira nem beira mas que tornaram-se riquíssimos do lado de cá, legaram para a Cidade da Bahia (o nome como Salvador era conhecida até o começo do século XX) uma marca indelével, conhecida nos meios acadêmicos e populares como baianidade. Seria, explicando muito toscamente, um “borogodó” que nos faz diferentes, únicos, inimitáveis no resto do Brasil. Baiano, sobretudo para quem vive do sudeste para baixo, é sinônimo de Carnaval, preguiça, lascívia. E só!

Salvador, a primeira capital do império ultramarino português nas Américas, fundada há 460 anos com um planejamento estratégico e meticuloso de colonização do Brasil, não passa disso, de uma cidade que cheira a dendê, folia e sensualidade escrachada, quase pornográfica. Se não fosse essa a ideia geral que o senso comum faz da capital, se não é essa a ideia que órgãos de turismo vendem de Salvador no exterior (justiça seja feita, a lascívia também é uma marca do Rio de Janeiro, vide os cartazes da Embratur, com morenas, negras e mulatas ou sambando na escola de samba ou de fio dental na praia), como se justifica cenas como as da série Ó Paí Ó, ambientada em um Pelourinho que só existe na ficção? Vi a reestreia do programa, que derivou de um filme que não sei porque fez muito sucesso – aliás, sei sim – que, por sua vez, derivou de uma peça teatral que não tive a oportunidade de assistir, daí não poder me referir ao texto do espetáculo.

Fico com a análise só do programa na tv, para não cometer injustiças. Retomando o fio da meada, na reestreia de  Ó Paí Ó nesta sexta à noite, uma frase escapou da tv ligada na redação e invadiu os fones de ouvido que tentavam justamente me desconectar dessa baianidade inventada e reducionista. Lázaro Ramos, ou melhor, seu personagem, Roque Bahia, conversando com outra personagem do programa, dizia que o prédio (cortiço bem nos moldes de Aloísio Azevedo em épocas do movimento naturalista na literatura nacional) estava “parecendo São Paulo” porque todos os moradores estavam trabalhando muito!

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Alguém por favor, avise os roteiristas deste programa pretensamente ” a cara da Bahia” que os paulistas que trabalham tanto, coitados, em grande parte, são descendentes de imigrantes europeus, imigrantes asiáticos ou de nordestinos (aí, incluindo os baianos, sergipanos, paraibanos, cearenses…). Alguém lembre a esses roteiristas de raro talento que a piada de que baiano é preguiçoso e que paulista se mata de trabalhar já perdeu a graça.

Temos seis, sete dias de Carnaval porque a campanha para manter viva a moribunda axé music é forte, porque afinal, temos de tratar bem ao turista, não porque ele é uma pessoa que merece ser respeitada, assim como somos nós, mas porque ele paga bem e se ele paga, a cidade sorri. Temos muitas festas, ensaios e não sei mais o quê, pelo mesmíssimo motivo, mas a montagem de toda essa parafernália não se faz por magia, são baianos ralando muito, sobretudo a “peãozada” carregando ferro e madeira para montar os camarotes onde, vejam só, as celebridades globais se divertem.

Alguém lembre a esses roteiristas também que a cidade de Salvador tem cerca de 2,8 milhões de habitantes, mas que todo ano, no Carnaval, milhares de “baianos” fogem da festa e viajam para destinos off folia. “Os quase dois milhões de foliões nas ruas” apregoado pelo mídia, tem um contingente elevado de turistas de diversas partes do Brasil e do mundo. Alguém lembre aos roteiristas da Globo que o Pelourinho, patrimônio histórico e cultural da humanidade pela Unesco, coalhado de casarões, igrejas e outros prédios que contam um pedaço da história do Brasil (no que isso tem de bom e de ruim) virou território do crack, da violência, da exclusão. Aliás, basta pegar um dos livros de Jorge Amado ambientados na região, o dramático Suor, por exemplo, para perceber que, fora alguns anos de maquiagem para enganar a torcida, e com o devido reconhecimento às ongs e projetos sociais sérios que tentam resgatar a cidadania do povo (maioria negra) que vive naquela região, o Pelourinho sempre foi um lugar abandonado.

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Pelo menos do início da decadência da nobreza açucareira e do fim da escravidão para cá. Antes, bairro nobre, mas com uma população negra periférica, de escravos, ex-escravos e alforriados que gravitavam pelas ruas mercando produtos, carregando cadeiras de arruar, carregando tonéis de excrementos. Depois, a nobreza se desfez e a população negra do Pelô passou a viver em cortiços, mas não porque fosse pitoresco e engraçadinho como o despudorado casarão de Ó Paí Ó, mas porque nunca existiu uma política pública, um interesse social legítimo de desenvolver aquele antigo centro da cidade.

Boa parte do que surge por lá ajuda sempre a reforçar a ideia de festa, sensualidade, negritude no que a ela é atribuída em força física e potência sexual, mas destituída do reconhecimento de humanidade.

Ó Paí Ó me envergonha como baiana. A baianidade do “borogodó” me envergonha. As ruas sujas e mal cheirosas de Salvador me envergonham. Fruto do descaso de sucessivos governos e tanto faz se é direita ou esquerda, todos são igualmente indiferentes e inoperantes, com exceção da maquiagem estratégica aqui e ali. A ditadura do axé, que transforma todo e qualquer ritmo que nasça na cidade, em periférico (pagode) ou alternativo (a cena rocker) me envergonha.

Lamento que das músicas de Caymmi e dos romances de Jorge Amado tenham sido extraídas, anuladas, deturpadas, pela competente propaganda oficial, toda a humanidade, toda a miséria, toda a alegria sim, mas todas as lágrimas, toda a complexidade de relações que sobreviveram, ou se modificaram, a partir das antigas sociedades pautadas na mistura entre a casa grande e a senzala, todo o suor.

Caymmi e Amado não são os inventores dessa baianidade fake que está aí. Essa, bebe na fonte do príncipe Maximiliano de Habsburgo e sua tara “pelas negras minas de ombros de fora”. É visão eurocêntrica, visão de quem se julga superior e que desmerece através da piadinha pronta, que reduz ao corpo e ao sexo todo um povo.

Apesar de saber que é empreendimento utópico, lanço aqui o meu manifesto a favor de uma Salvador que transcenda Ó Paí Ó.

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5 pensamentos sobre “Por uma Salvador para além de “Ó Paí Ó”

  1. Legal Andreia. Concordo com sua visão sobre essa verdade sufocante da mesmice massacrada e ignorante que operam cabeças de gente inteligente mas de mãos amarradas.
    Roteiristas bem pagos, equipes bem montadas, cenários paradisíacos … poderiam fazer muito melhor.
    Mas veja, acho que crescemos vendo esse tipo de coisa em todas as instâncias da vida. O cinema americano é especialista em destruir qualquer verdade que esteja há um palmo de seu nariz e no entanto, estamos lá, vendo e aplaudindo. Nas TV’s não confio mais faz tempo. Restam o teatro e o cinema.
    Mas, mesmo estes terrenos precisam de gente atenta por perto avisando e trazendo de algum lugar, indo buscar em algum lugar, a brasilidade pois senão ela ficará esquecida ou jogada em cantos de cuchias por aí.
    O caipira paulista, o matuto mineiro, o gaucho e suas bombachas alguma vez tiveram suas vidas respeitadas? Aqui e acolá. O nordestino acho que é o mais explorado de todos. Claro, é o mais criativo, mais curioso, mais cheio de culturas etc.
    Difícil é falar do carioca. Geralmente o que vemos são eles mesmos fazendo, portanto erram menos, o problema é que acaba cansando.
    As dublagens de desenhos estrangeiros? Tá lá, “é merrrmo”. Quando criança lembro de um desenho americano que tinha um personagem cujo sotaque na dublagem era de um nordestino. Hilário. Nunca mais vi isso.
    Era o desenho do Manda Chuva. Um gato malandro e sua turma. Apesar de ser malandro não tinha sotaque carioca. Hoje teria com certeza. Quem dublava era o Lima Duarte, mineiro. O que fica de ó paí, pra mim, é o extrionismo do Lázaro e algumas graças que divertem meus filhos. Mas é isso aí, é repetitivo demais, cansativo demais. A própria imagem destes talentos, que vão se tornando obrigátório nas telas, todas elas, gera cansaço e vontade de ir lá fora respirar, ou seja, quem for conhecer a Bahia ainda se surpreenderá com o que verá.
    Aconteceu comigo.
    Um abraço.
    Cesar Augusto dos Santos
    Araraquara – sp

  2. Isso só vai acontecer, Andreia, no dia em que os negros deixarem de ser coadjuvantes e mão de obra desqualificada,caricaturas de si mesmo, e passarem a protagonistas da sua própria história. É preciso deixar de fazer figuração nesse circo e se assumirem como cidadãos.

  3. Oi Érlon,
    Obrigada pela visita e pelas palavras, mas o pensamento crítico independe do gênero. Existem muitas blogueiras com páginas fantásticas na web, as mulheres tem tanta capacidade argumentativa e analítica quanto os homens. O importante que somos todos cidadãos e temos de tentar fazer a diferença. A mídia oferece versõe dos fatos, de acordo com interesses especificos, mas cabe a nós sabermos selecionar o que a mídia nos informa e mais, é importante refletir sobre toda e qualquer informação que recebemos. Um abraço!

  4. Olá! Gostei muito do seu blog, principalmente por ser de uma pessoa da bahia, ainda mais mulher (homens são maioria nos blogs que eu leio)! Sou paulista e tenho de admitir, a mídia manipula a maneira de pensar de todos. Blogs como o seu abrem nossa mente para a verdade do cotidiano. Parabéns!!!

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