*Luiza Mahin e a Consciência Negra

Nesta sexta-feira, 20 de novembro, é o Dia da Consciência Negra. A data existe para celebrar Zumbi, líder do emblemático Quilombo dos Palmares, símbolo de resistência contra a escravidão. Escolhi, porém, falar sobre uma líder negra, outro ícone de luta pela liberdade, uma mulher que, tal qual Zumbi, tem os fatos de sua vida real confundidos com a ficção. Um ser quase mitológico. Em celebração ao Dia da Consciência Negra, conto para vocês a história de Luiza Mahin, a liderança feminina da Revolta dos Malês:

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Quem é Luiza Mahin?

Gravura representando uma negra nagô, da Costa da Mina. Não existem imagens de Luiza Mahin, mas se como afirma Luiz Gama, sua mãe era uma negra mina, então ela devia ter um estilo de vestir e portar-se como a mulher representada nesta gravura

Gravura representando uma negra nagô da Costa da Mina. Não há registro da existência de imagens de Luiza Mahin, mas se ela era nagô do Daomé (atual Benin), como diz Luiz Gama, então seu estilo de trajar era semelhante ao da gravura acima

A primeira descrição de Luiza Mahin de que se tem notícia consta de uma carta escrita pelo poeta Luiz Gama, em 25 de julho de 1880. Luiz descrevia a própria mãe como uma africana livre, de baixa estatura, magra, bonita, preta retinta com dentes alvos, altiva, geniosa e nagô (como os africanos de origem iorubá eram chamados na Bahia colonial). Ainda de acordo com os escritos do poeta abolicionista, Luiza deve ter nascido por volta de 1812, no antigo Daomé (Benin), Costa da Mina, um dos portos que viveu intenso tráfico negreiro entre os século XVI e XIX. Chegou à Bahia como escrava, mas na África, era uma princesa. Alforriada, trabalhava como ganhadeira (vendedora de quitutes) pelas ruas do centro de Salvador e morava no Solar do Gravatá, onde hoje funciona a Casa de Angola. Quando Luiz Gama tinha oito anos, e após o fracasso do Levante Malê de 1835, Luiza Mahin teria entregue o filho aos cuidados do pai e fugido para o Rio de Janeiro, onde ajudou a organizar outras revoltas de escravos e onde morreu, em data ignorada. Fora os relatos do poeta, o outro registro sobre Luiza Mahin é uma obra de ficção, o romance Malês – A insurreição das senzalas, escrito pelo jornalista baiano Pedro Calmon, em 1933, quase um século após a rebelião malê ter fracassado. Neste livro, Calmon descreve Luiza como uma das duas mulheres que trairam a revolta, entregando os planos dos malês à polícia. Na obra, Luiza é descrita como arrependida da rebelião e disposta a “retratar-se” perante os brancos. O movimento negro porém, rejeita essa descrição, que na opinião de seus membros, era uma tentativa do escritor, branco e pertencente à elite baiana, de anular a importância histórica de uma líder revolucionária negra. Até onde se sabe, não existem documentos considerados oficiais que atestem a existência de Luiza, tais como certidões de batismo ou carta de alforria. A ausência da certidão, defendem os historiadores que usam como prova da existência dela a carta de seu filho, justifica-se pelo fato de Mahin ter rejeitado o sacramento cristão e ter continuado até sua morte, professando a crença nos orixás tal qual veio da África (sem o sincretismo). Para uma corrente de pesquisadores, Luiza é fruto da imaginação de Luiz Gama, uma tentativa do poeta em exorcizar os fantasmas do seu passado. Aos 10 anos, Gama foi vendido pelo pai como escravo e levado para São Paulo, onde morou para o resto da vida. Formado em Direito, poeta, também jornalista, ele defendia escravos acusados de matar seus senhores e conseguiu livrar 500 da morte por execução, ao alegar que os escravos agiram em legítima defesa, uma vez que a escravidão, sendo um regime extremo, requeria medidas extremas das vítimas. Eloquente, era um dos homens mais admirados dentro do movimento abolicionista. Já a corrente de pesquisadores que defende a existência de Luiza, além de basear-se nas memórias de Luiz Gama, também se baseia em pesquisa feita nos anos 40, quando foram recolhidos diversos relatos sobre os personagens populares que lideravam revoltas de escravos na Bahia do século XIX. Na época dessa pesquisa, um dos nomes mais citados por pessoas que beiravam os 90/100 anos de idade e que por sua vez, tinham escutado essas histórias de seus pais ou avós, era o de Luiza Mahin.

A revolta malê

O poeta Luiz Gama. Nascido na Bahia, Gama foi vendido aos 10 anos como escravo, pelo próprio pai, que era viciado em jogo e usou o filho para quitar uma dívida. Depois de ter sido escravo na infância e adolescência, já adulto, era jornalista, poeta e exerceu o Direito, defendendo escravos que matavam seus senhores em nome da liberdade

Malê era o nome pelo qual os africanos islamizados (muçulmanos), que eram alfabetizados em árabe, eram conhecidos na Bahia. Ao longo da primeira metade do século XIX, diversas revoltas irromperam na província sob articulação dos malês. O objetivo era além da liberdade da escravidão, uma imposição do Islã como religião oficial no reino que seria fundado em Salvador. A revolta mais famosa foi o levante de 1835, quando os malês chegaram a ameaçar o poder colonial e instituiram um quartel general na sede administrativa da cidade. Traídos, os líderes foram presos e executados e a revolta barbaramente dispersada, com diversos assassinatos de escravos e ex-escravos de origem iorubá. Luiz Gama, em suas memórias, revela que após o levante, as demais províncias do Brasil recusavam categoricamente comprar escravos de origem baiana, pois temiam que eles articulassem revoluções. O próprio Gama, quando estava em um dos mercados de escravos em São Paulo, quando criança, foi rejeitado por vários compradores, sob a alegação de que sendo baiano, podia trazer o germe da revolução dentro dele. Buscando pistas nas memórias de Luiz Gama e nas pesquisas que mostram o comportamento das mulheres negras no século XIX, é que se pode especular sobre o fato de Luiza Mahin ser uma das articuladoras do movimento malê. Na verdade, por trabalharem nas ruas, vendendo e por serem menos vigiadas que os homens escravos, as mulheres podiam formar uma rede de solidariedade e comunicação, que tanto servia para espalhar as mensagens das revoltas, quanto para formar irmandades cuja missão era juntar dinheiro para a compra de alforrias. Diversas pesquisas recentes colocam as mulheres em pé de igualdade com os homens na articulação da liberdade, embora elas se organizassem de forma distinta e usassem muitas vezes armas como a sedução e a proximidade com a casa-grande, gozando de maior confiança dos patrões, para articular seus planos.

Um mito de autoafirmação

Independente dos debates históricos sobre a existência real ou a invenção de Luiza Mahin, a importância da personagem, sobretudo em tempos de resgate da história afro-brasileira nas escolas, é imensa para reafirmação negra e feminina. Ícone libertário, Luiza Mahin serve de inspiração porque desconstroi a ideia ainda vigente de que a abolição foi uma concessão generosa, quando diversos fatos revelados demonstram que na verdade ela foi fruto de uma árdua luta que durou mais de 300 anos, combinada com interesses políticos do império brasileiro. Por isso, a necessidade de Mahin ser lembrada no Dia da Consciência Negra, figurando ao lado de Zumbi como um dos emblemas da reparação.

*O post foi escrito a partir de uma reportagem que fiz em 14 de novembro de 2004, para o suplemento cultural Correio Repórter, do Jornal Correio da Bahia, em Salvador. Na época, para aprender sobre a vida de Luiza Mahin, contei com material bibliográfico como as memórias de Luiz Gama e com a ajuda de históriadores como o doutor em História e professor titular da UFBA, João José Reis; da coordenadora do Ceafro, Vilma Reis e da mestra em história Mariele Araújo, que além de me concederem entrevistas esclarecedoras, me indicaram livros e documentos onde ampliar minhas pesquisas.

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Para saber mais sobre Luiza Mahin e os malês:

>>Rebelião escrava no Brasil – A história do levante dos malês. De João José Reis, editora Companhia das Letras. Este é considerado um dos estudos brasileiros mais importantes sobre as rebeliões de escravos do século XIX. Fundamental para quem quer saber mais sobre a resistência negra e a conquista da liberdade.

>>Entre o popular e a historiografia, uma imagem controversa: o caso Luiza Mahin. Artigo acadêmico de Aline Najara da Silva Gonçalves, graduada em História pela UNEB (Univeridade do Estado da Bahia),apresentado em 2009, no Enecult. Arquivo em PDF.

>>Verbete sobre Luiza Mahin na Wikipédia

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5 pensamentos sobre “*Luiza Mahin e a Consciência Negra

  1. Pingback: Resenha: Um defeito de cor – Mar de Histórias

  2. Voce conhece o livro Um defeito de cor? Acredita ser de ficcao? Para mim, eh a história dela. Se não conhece, poderia entrar de alguma forma em contato com a autora do livro para saber mais sobre Luiza. Gostaria muito de saber sua opiniao sobre isso.

    • Oi Polyanne, por coincidência estou lendo Um defeito de cor, já estou quase na metade e pretendo resenhar o livro quando terminar. Essa postagem aqui no blog eu escrevi em 2009 e ela é baseada em uma reportagem que escrevi em 2004 para o jornal onde trabalho. Um defeito de cor foi lançado em 2006, portanto, dois anos depois da minha reportagem sobre Luiza. Se você reparar bem, tem várias coisas que eu digo no post que estão no pano de fundo do livro – as vendedoras de quitute nas ruas de Salvador e o fato de Luiza ser apontada como uma vendedora de quitute, a movimentação do mercado de pessoas escravizadas, a origem de Luiza sendo apontada como no Daomé, etc. Tudo isso que eu escrevi, pesquisei em fontes que a autora de Um defeito de cor também deve ter consultado para ambientar sua história e criar um retrato da personagem. Portanto, o livro, acredito, é uma ficção, mas que traz elementos reais sobre a vida dos escravizados na Bahia do século XIX e traz personagens que de fato viveram na Bahia naqueles tempos. Mas os fatos da vida de Luíza que a autora narra de forma romanceada, como a vinda dela da África para o Brasil no navio, a morte da mãe e do irmão em África, a rotina de maus tratos sofridos no engenho, etc., em sua maioria, esses fatos são ficcionais sim, mas todos feitos com base no que a historiografia registrou como sendo a vida das mulheres negras escravizadas no Brasil colonial. Essa Luiza de um defeito de cor é uma representação de partes da vida de muitas mulheres que viveram como escravizadas e alforriadas na época colonial. Abraços

  3. Pingback: Os números de 2015 segundo o WordPress | Mar de Histórias

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