“O racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos
socialmente gerados de ver o mundo e viver nele”.
(Frantz Fanon)
A citação acima é da obra Pele Negra, Máscaras Brancas, escrita pelo intelectual antilhano Frantz Fanon nos anos 40 e publicada em 1952. Conforme prometi alguns posts abaixo, tentarei dividir o impacto que a leitura desta obra emblemática para os movimentos negros causou em mim. Até um mês atrás, antes de começarem as aulas como aluna especial do mestrado em Cultura e Sociedade, na UFBA, confesso minha ignorância completa sobre quem tinha sido Fanon e mais ainda sobre sua obra e a importância dela nos meios acadêmicos e no centro de movimentos sociais mundo afora. Eu nunca tinha ouvido falar dele e quando o conheci através da sua obra mais famosa, lamentei profundamente o fato de ser tão ignorante. Fanon era um autor que eu queria que tivesse entrado na minha vida mais cedo. No entanto, pode ser que mais jovem eu não estivesse preparada para conhecê-lo.
Após participar de uma calorosa discussão sobre sua obra em sala de aula, percebo que Fanon ainda incomoda muito. Mais de 50 anos depois da publicação de Pele Negra…, colocar o dedo na ferida do racismo e dos impactos da escravidão negra nas sociedades pós-coloniais ainda causa uma certa saia-justa. Não sou militante de nenhum movimento especificamente e tenho uma certa desconfiança do radicalismo de todos os movimentos em geral, sejam de esquerda ou de direita. Em certa medida, algumas passagens da obra chocam por serem completamente radicais, mas dolorosamente verdadeiras, guardadas as devidas proporções, pois passaram-se mais de 50 anos desde a publicação e o fato dele falar com propriedade dos conflitos pós-coloniais nas Antilhas, sobretudo na Martinica, pode levar erroneamente à crença de que seus exemplos não se encaixam para o Brasil. Encaixam-se com perfeição cirúrgica em diversas situações, visto que também somos diaspóricos (recebemos contingentes elevados de africanos expatriados pelo tráfico humano por mais de três séculos) e pós-coloniais (visto que fomos colônia portuguesa por mais de 400 anos).
Pele Negra, Máscaras Brancas, diz Lewis R. Gordon, o autor do prefácio da edição brasileira (publicação da EDUFBA), foi escrito originalmente como tese de doutoramento de Fanon na Faculdade de Medicina. A obra, porém, foi recusada e o orientador recomendou que escrevesse sobre um caso clínico. Fanon então, decidiu transformar Pele Negra em um manifesto anti-colonialismo e um libelo à libertação do homem, tanto branco, quanto negro, do que ele chama de complexo de superioridade (do branco colonizador) e de inferioridade (do negro colonizado). O livro é uma colcha de retalhos e uma sessão de exorcismo combinadas. Colcha de retalhos porque Fanon, a título de traçar um panorama psicológico dos martinicanos, une poesia, prosa, filosofia, exemplos de casos clínicos – com a devida conversa de consultório, crítica literária (ela analisa livros escritos por romancistas da Martinica que só ajudavam no seu tempo a reforçar o estereótipo de que os negros seriam uma raça inferior), psicanálise…etc.
E uma sessão de exorcismo porque o próprio autor, em tom confessional comovente, revela o quanto para ele, enquanto homem negro, a construção de uma identidade descolonizada é tarefa sofrida. A própria construção da identidade negra é questionada por Fanon, bem como a existência de uma identidade branca. Daí ele acreditar que a colonização e seus efeitos moldaram sociedades psicologicamente doentes. De um lado, o opressor que precisa do oprimido para legitimar sua superioridade. Do outro, o oprimido que precisa do opressor para legitimar seu lugar de vítima em busca de reparação. É bem radical, sem dúvida, principalmente quando percebemos que na sociedade atual, para que as distorções deixem de existir, é preciso a reparação para equilibrar as forças.
Aos olhos do século XXI, a discussão sobre raça estaria encerrada e ao invés disso, trabalha-se o conceito de etnias diferentes em uma única raça, a humana. No entanto, no tempo de Fanon, o conceito de raça ainda era muito presente na sociedade e pretexto para os mais diversos fins, quase todos excludentes, comparativistas e alguns bem cruéis, como o nazi-facismo. O racismo porém, está longe de ser um problema do passado, do tempo de Fanon. E é nesse aspecto que o livro toca o dedo na ferida. Para quem ainda se ilude com a crença de que o Brasil é uma bela e próspera democracia racial, um país multicolorido onde o encontro das raças aconteceu sem sofrimento e que negros, índios e brancos miscigeram-se sem traumas, a leitura é dolorosa. Mesmo quem não compactua dessa visão estado-novista do país e tem noção clara das desigualdades sociais e raciais ainda presentes nesta república multicultural (aí sim, bem miscigenada), a leitura é esclarecedora e ao mesmo tempo impactante.
Para mim, que como boa parte dos baianos e dos brasileiros, sou fruto da miscigenação, certas passagens do livro são quase autobiográficas. Ainda assim, senti falta de um pouco mais de atenção aos mestiços e aos conflitos que eles enfrentam, consigo mesmos e com os outros, quando vivem em sociedades radicalmente segregadas, em que não são suficientemente brancos para ser aceitos entre a elite branca e nem negros o suficiente para engrossar as fileiras do movimento que pede a reparação, o respeito e o equilíbrio de forças na sociedade. Em certas passagens até, ele é implacável. Quando diz que as mulatas martinicanas não queriam se envolver com homens escuros, mas buscavam sempre os mais claros para se casar e assim “limpar” a raça, há desprezo em sua voz. Desprezo por essa mulher martinicana que, no entanto, é fruto do colonialismo.
Mas, no meu caso especificamente, não tem como não identificar um discurso familiar particularmente próximo nessa afirmação de que os negros precisariam “embranquecer” para existir na sociedade colonialista. Com a cultura afrodescente no Brasil, por exemplo, em diversos momentos houve esse conflito entre valorizar a raiz da mãe África ou desafricanizar um pouquinho, tirar da cozinha e botar na sala de jantar, com o objetivo de ganhar a simpatia da elite. E no Brasil, o conceito de elite é particularmente parecido com o da Martinica de Fanon: por aqui, assim como lá, o dinheiro embraquece até a mais negra das peles enquanto a falta do vil metal enegrece a pele mais clara. Isso não significa que negros ricos gozam do mesmo status que os brancos ricos. O racismo ainda existe em toda a sua crueldade. Mas o preconceito social diminui de acordo com a conta bancária.
Lembro que na aula, quando toquei na questão da mestiçagem, tentando botar lenha na fogueira ao indagar que papel tem o mestiço nessa história toda, uma colega respondeu: “é preciso escolher um lado”. Mas e se o lado que o mestiço quiser escolher for só o lado da aceitação enquanto ser humano, independente da cor da pele? E se a ideia for ser aceito pelos dois lados? E se a intenção for que não hajam lados e sim, respeito na diversidade, seja ela de etnia ou culturas? Utopia, diria alguém mais calejado. “Isso aí que você prega seria a democracia racial legítima”?. Não sei, sinceramente ainda busco minhas respostas. Mas não deixo de atentar para a palavra mulato e a conotação pejorativa que teve durante tanto tempo no Brasil. Teve? Ou ainda tem? Lembra mula, um híbrido estéril, desqualificado. E não houve escritores e até historiadores que alardearam aos quatro ventos que a “mulatice” era a perdição do país? Pelo menos até o discurso se inverter e termos uma verdadeira exaltação do mulato inzoneiro – Aquarela do Brasil para tingir de cores mais leves a negritude do país!
Pois é, o mito da democracia racial prevalece. Mas porque não torná-lo uma realidade, só que pelos motivos certos? Nada de diferenciação entre as cores, há lugar no mundo para todas elas, sem que haja dominados e dominadores. Pois era com isso, numa definição bem simplista, que Fanon sonhava. Com seres humanos, sejam negros, brancos, amarelos, vermelhos, não importa, mas seres humanos. No entanto, ele mesmo reconhece a distância dessa realidade e a luta para reverter o que séculos de um regime cruel e de discursos desqualificantes solidificaram a nível de inconsciente coletivo. É perfeita a análise que faz da publicidade, do cinema, das canções, todas moldadas para demarcar um lugar, inferior, para o diferente, o negro, o outro, na sociedade.
Em algumas passagens, Fanon parece aderir a uma ideia binarista da vida, uma ideia de que negros/brancos, africanos/orientais e europeus/ocidentais estariam em eterno conflito. Provavelmente, no seu tempo estavam mesmo e ainda hoje, a democracia etnica esteja longe de ser alcançada. A tendência do mundo globalizado porém, é também globalizar as cores, na teoria ao menos. Há autores que já trabalham com a questão sob uma ótica mais polivalente, sem esse jogo de contrários que parece marcar a obra de Fanon. Para mim, só parece, porque se entendi tudo o que li da maneira correta, era justamente o fim dessa dualidade entre céu (branco) e inferno (negro) que ele queria.
Fico me perguntando como Fanon veria a eleição de Obama para a presidência dos EUA? Ou de um ex-operário nordestino para a presidência do Brasil? Ou ainda de um índio para a presidência boliviana? Sem entrar no mérito das competências políticas, dos partidos ou dos interesses que cada um defende, penso apenas em termos de representatividade étnica e social ter um negro, um nordestino e um descendente de índios no poder. Acredito que Fanon comemoraria como uma mudança de perspectiva, mas não deixaria o senso crítico ser embotado. Estas seriam apenas algumas batalhas vencidas, mas outras ainda estão por travar, principalmente aqueles preconceitos arraigados dentro de cada um de nós.
Quem era?
Frantz Fanon nasceu na Martinica (ex-colônia francesa nas Antilhas), em 1925, e morreu, aos 36 anos, de pneumonia, em 1961. Cedo demais, para alguém com o seu gênio. Era psiquiatra, dirigiu o Dept. de Psiquiatria do Hospital Blida-Joinville, na Argélia, onde também se engajou na luta pela independência deste país. Soldado durante a II Guerra, foi condecorado duas vezes por bravura. Os amigos mais próximos diziam que era um revolucionário e um homem de temperamento forte. Seu pensamento filosófico, de origem basicamente humanista, inspirou outros estudiosos e pensadores da diáspora africana, teoria política e social, teoria da literatura, estudos culturais e, principalmente, estudos sobre o colonialismo e o pós-colonialismo. Ao todo, escreveu quatro livros, sendo os dois mais importantes – lançados em português: Os condenados da terra e Pele Negra, Máscaras Brancas. Este último publicado pela EDUFBA, em 2008, com tradução de Renato da Silveira e prefácio de Lewis R. Gordon.
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Para saber mais sobre Fanon:
>>O pensamento anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de Independência da Argélia (em pdf)
>>Biografia de Fanon na Wikipedia (em inglês)
Beleza Andreia, a sua leitura passados quase dez anos, procede! Alguns conceitos estão em nós, construídos a partir das viagens Senghoriana, ainda que, pouco popular as linhas teóricas desse pensamento entre nós; no entanto, a chamada “pedagogia da senzala” tem feito um uso, apesar de deslocado, muito constante… E a emoção têm prevalecido na disputa, como se fosse a única arma que dispomos, lutar por uma negritude forjada a partir da primeira imagem estabelecida pelo colonizador sobre nós – eis que hegemoniza um debate por uma identidade ancestral construída a partir do espelho quebrado pela “pedagogia da senzala” como bem sinaliza o professor Jorge Conceição!
Saúde e paz, abraços…
Frantz Fanon nos ensinou e continua a nos ensinar muito. Pois estou aos 5.3 primaveras, todas vividas com muita irreverência em relação à mestiçagem. Entendo perfeitamente o quanto isto foi bom para a cultura brasileira, porém entendo melhor ainda o quanto drástica tem sido para o povo negro do Brasil. A reparação que buscamos – e estou nesta luta desde os 14 anos de idade – compreende a ascensão dos povos que compõem a Republica Federativa do Brasil, Os verdadeiros donos dessa nossa terra – que são os índios – não podem continuar sendo exterminado pelo moderno colonialismo e nem por nenhum outro tipo de colonialismo que se pense adotar. E aí, Fanon foi direto: um Grande Revolucionário. Eu não ficaria me perguntando como Fanon veria a eleição de Obama para presidência dos EUA, ou de um ex-operário nordestino para a presidência do Brasil, ou ainda de um índio para a presidência boliviana. Acredito que comemoraria, sim, como uma mudança de perspectiva, mas não deixaria o senso crítico ser embotado. Estas seriam apenas algumas batalhas vencidas, mas outras ainda estão por travar, principalmente aqueles pré-conceitos arraigados dentro de cada um de nós. E isso é, extremamente, verdadeiro assim como foi Fanon.
Ainda que com um enrustido – e por linhas tortas fanoniano – ‘elogio à mestiçagem‘, uma leitura bem acurada de Fanon. Lucida e atenta às entrelinhas, recomendável a quem só leu o martinicano à flor da pele e sem tirar a máscara.
Vejo o mundo da minha perspectiva enquanto indivíduo, que é a de ser filha de uma branca com um negro e ter sido criada numa família miscigenada, no que isso teve de bom e de ruim, confrontada com os dois lados da moeda, da tensão social, do preconceito. Não posso e nem pretendo negar que sou filha da mestiçagem, mas sei o quanto ela custou e custa, na carne (não apenas na pele). Tudo o que fiz com essa primeira e talvez ainda ingênua leitura de Fanon (obrigada por considerá-la lúcida) é entender mais da questão e de mim. Tomara que sirva para ao menos despertar o interesse de mais alguém. E quem sabe, aos poucos, vamos todos desvestindo a máscara. Abraços e obrigada pela visita ao blog.
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Formidável!! Muitíssimo recentemente estou travando contato, estudando o legado de Fanon. Provavelmente escreverei uma monografia sobre a Argélia e então é lógico que terei de “frequentar”, “visitar” as obras dele a fundo. Achei o texto uma introdução muito boa. Um grande abraço!
Obrigada Reinaldo, mas ainda tenho muito o que caminhar para entendê-lo em toda a sua complexidade. Abraços!
Acho que usei o adverbio “pouco” pra evitar o radicalismo dos militantes. Sinceramente, acredito que de um lado e do outro, posturas radicais não dão bons resultados, é a paixão pelo budismo – tou sempre tentando achar o bendito caminho do meio – mas compreendo que em determinados momentos, em certas circunstâncias históricas, para marcar uma posição, para sair da invisibilidade, para existir de fato, para ser reconhecido enquanto cidadão de direito, é preciso manter uma postura mais rígida. Nesse contexto, você tem toda razão, carecemos de muita reparação. Um beijo grande!
Bela introdução,Andreia, do livro e autor que, confesso, também não conheço.Mas discordo quando você fala que é preciso um pouco de reparação. Acho que é de muita que carecemos. Beijos