“Senhora” em versão folhetim, às 19 horas

Milena, vivida pela bela atriz Sheron Menezes

Milena, vivida pela bela atriz Sheron Menezes

Quem acompanha novela deve ter visto esta semana uma cena familiar em Caras & Bocas, o folhetim das 19 horas da Rede Globo. Milena, a jovem negra e pobre que descobriu ser filha de um empresário riquíssimo, contratou um advogado para “comprar-lhe” um noivo. Neste caso, Nicholas, um playboy alpinista social que andou usando, abusando e humilhando a moça.

Particularmente, tenho um interesse acadêmico nas novelas, mas não nego que gosto de ficar de vez em quando refestelada no sofá torcendo para os malvados se danarem e os bonzinhos vencerem no final. O que me chamou a atenção é que o drama de Milena é velho conhecido nosso. Puxem pela memória e lembrem que nos idos do século XIX, o nome da protagonista era Aurélia, o playboy mau-caráter atendia pelo nome de Fernando e, ao invés do autor Walcyr Carrasco (que escreve Caras & Bocas) o criador da história chamava-se José de Alencar.

Lembram dele? Muitos de nós lemos este autor na adolescência. Como esquecer de Iracema, Ubirajara, As Minas de Prata, O Guarani? Como não recordar as provas e exercícios de interpretação de texto sobre cada um desses livros?

Edição da Martin Claret do romance Senhora

Edição da Martin Claret do romance Senhora

Aurélia e Fernando, para os mais novinhos ou os que não andam com a memória lá muito boa, são personagens do romance Senhora, uma das obras mais audaciosas de Alencar e talvez uma das pioneiras da literatura brasileira nos idos de 1800. Para os padrões da época, Aurélia era um escândalo. Acho-a genial! Embora discorde da vingança como método para curar feridas, não dá para fingir que fico indiferente ao fato de uma mulher, em pleno século XIX, tomar as rédeas da própria vida. Ainda mais numa sociedade onde as mulheres mal existiam como indivíduos e mal eram consideradas cidadãs. Aurélia encara as adversidades do destino e muda o mundo ao seu redor, ao seu bel prazer. Ela não se rende, faz com que se rendam à ela.

Não sei quanto a vocês, mas para mim, Aurélia é uma das protagonistas mais bem resolvidas da nossa literatura. Ficar chorando pelos cantos? Que nada, ela vai à luta. Duvidam? Pois Aurélia, assim como a Capitu de Machado de Assis, já originou tese de doutorado só pelo seu comportamento libertário. E como não!? O romance de Alencar começa mostrando a vida simples de uma moça que é órfã de pai e cuja mãe costura para fora para garantir-lhes o sustento. Essa moça, Aurélia, é apaixonada por Fernando, um bon vivant que a namora e depois a abandona, porque está a cata de uma noiva rica em quem possa dar o golpe do baú. A mãe de Aurélia morre e ela se vê sozinha no mundo e com o coração aos pedaços por uma desilusão amorosa das brabas. Só que, o destino sorri e, algum tempo depois, ela descobre que seu avô era milionário e lhe deixou uma grande fortuna. É aí que Aurélia mostra que tem sangue nas veias.

Norma Blum interpretou Aurélia em adaptação de Senhora para a TV

Norma Blum interpretou Aurélia em adaptação de Senhora para a TV

A ex costureirinha pobre toma posse da fortuna, aprende etiqueta, piano e tudo mais que uma dama precisava saber naqueles tempos aristocráticos e, alguns anos depois, quando Fernando está sem eira nem beira, dá o golpe fatal. Manda o tutor acertar seu casamento com o ex-desafeto por cem contos de réis. Ele se casa sem saber quem é a sua “senhora”, ou seja, a mulher que o comprou. Só depois, descobre que é Aurélia, a pobre moça que ele abandonara. A partir daí, José de Alencar se supera descrevendo cada uma das humilhações que Aurélia faz Fernando passar. Sempre jogando na cara dele que o comprou e que ele portanto, não tem dignidade. Apesar de ainda amar o rapaz, ela toma para si a missão de dar-lhe uma lição, de fazer-lhe provar do próprio veneno, fazendo com ele tudo o que ele fez com ela, quando era uma pobre costureira.

Ao mesmo tempo, Aurélia ensina Fernando a ser homem. Apesar de considerá-lo indigno por ter se vendido, ela o ensina o caminho para reconquistar a honra perdida e claro, para que descubra o que é o amor de verdade. Fernando, graças a força de caráter de Aurélia, revê os próprios atos e pouco a pouco, reescreve uma nova trajetória.

José de Alencar, criador de uma das protagonistas mais audaciosas da nossa literatura

José de Alencar, criador de uma das protagonistas mais audaciosas da nossa literatura

Walcyr Carrasco parece que vai dar o mesmo destino para Milena e Nicholas. A moça pobre, negra, filha de uma empregada doméstica, humilhada pela família de Nick, vítima das armações da irmã dele, a ambiciosa Judith, vai dar o troco. Provavelmente, Milena irá fazer com Nicholas o mesmo que Aurélia fez com Fernando. Primeiro, vai castigá-lo, porque, cá para nós, ele bem que merece. E depois, irá ensiná-lo a ser mais humano, a não desprezar as pessoas porque elas não tem dinheiro ou porque tem uma cor de pele diferente da dele. Milena irá tornar Nick um homem de verdade, no sentido de humanidade e não de masculinidade.

Se o autor da novela vai optar pelo mesmo final de Alencar, só assistindo até o the end. E nem esperem que eu conte o final do romance. Recomendo que quem não leu, vá à primeira biblioteca disponível.

Com este post, também não estou desprezando o trabalho de Walcyr Carrasco, um autor de quem gosto bastante. Acredito que o que ele está fazendo não é plágio, mas uma atualização de uma história que deve ter no mínimo uns 150 anos. O escritor Salman Rushdie, autor de O chão que ela pisa, costuma dizer que todas as histórias nascem de um único lugar e que no mundo, o que existe é uma única, interminável e maravilhosa história, reinventada infinitas vezes, por diversos povos, sendo que cada povo coloca um pouco de si na receita.

Walcyr Carrasco, autor de Caras & Bocas

Walcyr Carrasco, autor de Caras & Bocas

Acredito que com a sua protagonista, além de dar força para uma personagem negra, tirando-a da cozinha e colocando-a na posição de “senhora”, o autor de Caras & Bocas rende o seu tributo pessoal à personagem criada tantos anos atrás por José de Alencar. Embora Aurélia não seja negra, era pobre, pertencia a uma classe social desprezada por formas de preconceito tão cruéis quanto o racismo, guardadas as devidas proporções.

Portanto, nada de praticar vingancinhas por aí, que os tempos são outros e a vingança não tem nada de nobreza. Mas, desejo a todas vocês a coragem de Aurélia e a força de Milena para recomeçar sempre que for preciso e reescrever a própria história cada vez que um capítulo das suas vidas não sair exatamente como vocês merecem.

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