Da série Crônicas do Cotidiano
A monotonia da viagem pela Avenida Suburbana foi quebrada na altura do bairro de Lobato. A porta dianteira do ônibus se abriu e um rapaz entrou. Cabeça raspada, cicatrizes de cortes no rosto. Trajava uma camisa azul e trazia a tiracolo uma bolsa preta. A princípio, acreditei ser um dos jovens pregadores de uma ONG evangélica, que costumam entrar nos ônibus para vender canetas com as quais supostamente financiam um programa de reabilitação para dependentes químicos. Espero que realmente o motivo seja esse, porque é bem nobre. Mas o rapaz não trajava a camiseta típica da ONG, vestia uma dessas camisas de botão, feitas com tecido ordinário. Pelo cheiro, devia estar há dias sem lavar. Uma senhora ao meu lado, carregava uma bandeja de empadas envolta em papel celofane. O cheiro era bom e eu sentia fome. Para disfarçar, comecei a mascar um chiclete de menta. O rapaz pediu um minuto de atenção dos passageiros. Baixei o volume do mp3 plugado ao ouvido. Viagens longas, de pelos menos 40 minutos dentro de um ônibus, necessitam de trilha sonora. Percorrer a Suburbana ao cair da tarde, com o lusco-fusco e as sombras das lâmpadas se projetando sobre um pedaço da baía de Todos-os-Santos, emoldurando a tristeza dos telhados da minha infância, exige música. Olhei para o rapaz que pedia atenção e ele contou sua história. Não lembro exatamente as palavras, a memória é a mais traiçoeira das habilidades humanas, mas tentarei contar o que aconteceu com o máximo de fidelidade.
O rapaz se apresentou como um presidiário cumprindo condicional e disse que vendia canetas para viver, desde que ganhou o direito de sair de dia para trabalhar, tendo a obrigação de retornar ao presídio ao anoitecer. Como era fim de semana, ele tinha o bônus de poder dormir em casa e só retornar ao cárcere no domingo, antes das cinco da tarde. A senhora ao meu lado, discretamente cutucou minha perna com o pé. Na verdade, deu um chute na minha canela, mas olhei para ela, sorri e pisquei um olho, como quem diz, calma, não há o que temer. O rapaz careca e cheio de cicatrizes continuou a narrativa. Ele disse que era um ex ladrão, ou melhor, um ex assaltante de ônibus que costumava agir exatamente naquela linha, percorrendo da Suburbana até a Avenida San Martin. Ao ouvir isso, a senhora ao meu lado ficou pálida como uma folha de papel e por pouco não deixa a bandeja de empadas cair do colo. Segurei a bandeja, seria um desperdício deixar aquelas empadas rolarem para o chão. O ex ladrão de ônibus manteve o tom calmo e frio dos sociopatas e eu, curiosa por natureza, tirei os fones para acompanhar os detalhes daquela vida diante de mim. O ex ladrão agora era um homem de Deus e apelava em nome dele, para que os passageiros comprassem uma de suas canetas. Enquanto detalhava as maldades que costumava praticar contra os passageiros quando era um assaltante, distribuía as canetas entre as pessoas sentadas nos bancos, tensas, confusas e sem entender direito se aquilo era um assalto, um golpe de marketing ou mais uma das histórias que “só se vê (na periferia) da Bahia”.
De repente, o rapaz começou a pregar. Contou que no presídio é conhecido como Pastor pelos outros detentos e que apostava que se ele pedisse, ninguém naquele ônibus teria coragem de “dar um amém para Deus”. Nem precisou pedir, um coro de améns, aleluias e glórias a Deus irrompeu dos bancos, como em um ensaiado programa de auditório. Empolgado, ele pediu aplausos para Jesus e o som das palmas e assobios (alguém assobiou para deixar o espetáculo ainda mais esdrúxulo) poderia ser ouvido pelos veículos vizinhos. E seguimos viagem. Passamos pela San Martin, chegamos à Rótula do Abacaxi e a essa altura, todos já tinham inclusive visto as cicatrizes dos seis tiros que o ex ladrão levou antes de se converter “em nome de Jesus”. A senhora das empadas me olhava com um par de olhos esbugalhados e eu segurava sua mão, por baixo da bandeja de empadas. Com a mesma naturalidade mantida desde o início da performance, o rapaz recolheu as moedas de quem comprou as canetas e guardou as canetas de quem, ou por falta de moedas ou por ceticismo, não caiu na conversa de um ex- ssaltante convertido. Na rótula, o rapaz desceu do ônibus, não sem antes agradecer e pedir uma última louvação aos passageiros. “Se você ama Deus, diga amém”.
Amém!
P.S.: Comprei uma caneta.
P.S.2: Não ganhei nenhuma empada.