Sobre ciúme e essa mania de achar que gente tem dono

oteloO que se esconde por trás do ciúme? Alguns acreditam que é afeto, outros que é a prova incondicional de um grande amor e, os mais sensatos, que é posse. Me incluo na categoria dos que enxergam o ciúme como uma forma distorcida e negativa de amor. Seria na verdade a negação do amor, porque negar a liberdade de escolha, de movimentos, de ir e vir de alguém, com certeza é a antítese do amor. As pessoas não são propriedades ou objetos que se dispõe na prateleira mais alta do armário, inacessíveis aos olhos e a cobiça alheia. Pessoas se relacionam. Guardar o amado ou amada a sete chaves, pensando que assim ele ou ela vai ficar livre da tentação de se apaixonar por outro é ingenuidade. O que constrói relações é a sinceridade e não a possessividade. Ninguém está isento de ser atraído por outra pessoa, mas o que vai determinar o desfecho da história não é colocar um GPS no coração do amado (a) e sim a base em que a relação foi construída. Se existe amor, se existe respeito, se existe cumplicidade, certamente a pessoa vai pensar duas vezes, pesar prós e contras, antes de abrir mão de um relacionamento tão bom, pela incerteza de um novo. E se ela se jogar de cabeça na novidade, então é porque a história de amor cor-de-rosa e eterna só existia na imaginação de um dos pares e alguma coisa estava errada com o casal. Tentar controlar a quem se ama é o primeiro passo para perder a pessoa, afastá-la. Todo ciumento é um egoísta, um adulto que não superou o egocentrismo da infância. Concordo com o autor francês François de la Rochefoucauld. Ele dizia que no ciúme há mais amor próprio que amor ao outro. E é verdade. Quem já teve o azar de se envolver com um ciumento sabe que ele ou ela cultivam mais o orgulho de sentir ciúmes do que a preocupação com o bem-estar do parceiro (a). Ciúme incomoda, aprisiona, sufoca. No início da relação, aquele namorado (a) que liga insistentemente de dez em dez minutos parece bonitinho, romântico… E no final de alguns meses, quando a cegueira da paixão dissipa e a gente olha para dentro da relação e vê se ela tem consistência, aquele excesso de atenção, beirando a paranoia, já não tem graça. Aristóteles já descrevia o ciúme, no século IV a.C, como um sentimento profundo de inveja, de querer o que é do outro. Faz sentido se imaginarmos que o ciumento quer a liberdade do outro em troca de uma promessa de amor incondicional. Ele quer submissão. Mas, começar uma história de amor submetendo-se, contrariando a própria vontade para apenas agradar ao outro é um caminho certeiro para o fracasso. De filósofos a romancistas, de psicanalistas como Freud, que escreveu um tratado sobre a patologia do ciúme, a cineastas como Ettore Scola, o ciúme é tema que, apesar da carga negativa que traz, não sai da moda. Muitos desatinos já se cometeu em nome de ciúme, embora os desatinados digam que é em nome do amor. Ainda citando de la Rochefoucauld: “O ciúme nasce sempre com o amor, mas nem sempre morre com ele”.

otelo2NA LITERATURA E NO CINEMA

A literatura e o cinema são pródigos em transformar o ciúme em matéria-prima para obras que, ao mesmo tempo em que exploram o tema nas suas histórias, contribuem para defini-lo. Quem nunca usou o termo “atração fatal” (nome de um filme de 1987, com Michael Douglas e Glenn Close no papel de uma amante rejeitada que persegue o ex) para descrever um relacionamento conturbado? Quem nunca comparou um homem ciumento a Bentinho ou Otelo? Shakespeare e Machado de Assis, aliás, souberam como nenhum outro autor definir o que se passa na alma de um ciumento, a tormenta que ele vive, gerada única e exclusivamente pela dúvida e pela imaginação fértil, que idealiza situações que não existem. Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote, também definiu os ciumentos da seguinte forma: “são criaturas que sempre olham tudo com óculos de aumento, os quais engrandecem as coisas pequenas, agigantam os anões e fazem com que suspeitas pareçam verdades”. Otelo matou Desdemona por causa de um lenço roubado e, só depois da morte da esposa, descobriu que ela era inocente e ele havia sido enganado pela inveja e pelos ciúmes de Iago, seu capitão. Iago aliás, é ainda mais ciumento que Otelo. Estudiosos dessa obra de Shakespeare defendem a teoria de que a paixão de Iago por seu comandante e o seu despeito por Desdemona o leva a engendrar o plano que culmina em tragédia. Já o célebre Bentinho é o maior ciumento da literatura brasileira. Paranoico, sofrendo de um grande complexo de inferioridade em relação a Capitu, ele atribui a ela uma traição que nunca ficou provada. Ouvi uma vez do professor Alcides Vilaça, um dos maiores estudiosos da obra de Machado de Assis no Brasil: “Não dá para levar tudo o que Bentinho diz ao pé da letra. Ele resolve escrever apenas seu ponto de vista distorcido como forma de se vingar da superioridade que ele mesmo reconhece na mulher. Não dá para esquecer também que Capitu só tem voz através da boca de Bentinho”.

*’CRIME PASSIONAL’ ABALA SALVADOR NO SÉCULO XIX

Em 1947, o historiador Pedro Calmon transformou um célebre crime passional ocorrido em Salvador, no século XIX, em romance. A Bala de Ouro – História de um crime romântico foi inspirado no final trágico do noivado entre uma jovem baiana chamada Júlia Fetal e o professor João Estanislau da Silva Lisboa. Certa vez, durante uma entrevista, o historiador Cid Teixeira, uma espécie de oráculo do cotidiano baiano, me contou a história real que inspirou o romance. Segundo o professor Cid, Júlia Fetal terminou o noivado com Estanislau porque se apaixonou por outro rapaz. Cego de ciúmes, o professor premeditou o assassinato da ex-noiva, mandando inclusive cunhar uma bala de ouro específica para ser usada na ocasião. Júlia foi surpreendida dentro de casa e morta com um tiro certeiro no peito, disparado por Estanislau. O julgamento do noivo assassino mobilizou o fórum de Salvador durante meses, com acirrados debates. Como se tratava do século XIX, época em que traição amorosa era crime passível de morte, a questão principal nem era fazer justiça ao assassinato de Júlia, mas girava em torno da legitimidade do crime. Uns defendiam que Estanislau não tinha direito de matar Júlia, visto que os dois não eram casados e ela não havia cometido adultério, apenas terminara um noivado! Outros queriam a absolvição de Estanislau, pois acreditavam que ele havia sido humilhado ao ser abandonado pela ex-noiva. Felizmente, ele foi condenado.

CIÚME PARA LER:

otelo3Otelo – William Shakespeare
Dom Casmurro – Machado de Assis
São Bernardo – Graciliano Ramos
Alves & Cia – Eça de Queiroz
O amor nos tempos do cólera – Gabriel Garcia Márquez
E do meio do mundo prostituto só amores guardei aos meus charutos – Rubem Fonseca
A Bala de Ouro – Pedro Calmon

CIÚME PARA ASSISTIR:

atracaofatalAtração fatal, 1987, Adrien Lyne
Ciúme à Italiana, 1970, Ettore Scola
Ciúme e obsessão, 1997, Peter Levin
Ciúme, 1999, Vicente Aranda
Ciúme, sinal de amor, 1949, Charles Walters
Pão, amor e ciúme, 2005 (versão restaurada), Luigi Comensini
O Inferno do amor possessivo, 1994, Claude Chabrol

*Na época em que Júlia Fetal morreu, no século XIX, não se falava ainda em feminicídio, o conceito sequer existia, e os assassinatos de mulheres por companheiros ou por seus ex eram tratados como ‘crime passional’, ou seja, ‘motivados por paixão excessiva’, o que para mim, só comprova o caráter cruel, violento e doentio do ciúme.

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