“Eu não escrevo o que quero, escrevo o que sou.”
(Clarice Lispector)
A melhor coisa que uma professora pode fazer por sua aluna de 16 anos é entregar para ela o livro Perto do Coração Selvagem e dizer “leia, pense e depois converse comigo sobre o que achou”. Foi assim que aconteceu quando era adolescente e foi muito bom. Dessa forma, quase que como um desafio, Clarice Lispector entrou na minha vida e a partir daí, descobri o que significa ser mulher. Não, nada de explicações antropológicas, ou de guerra dos sexos, ou ainda, a sociologia do significado feminino no mundo de hoje. Descobri o que é ser mulher por dentro, porque a literatura introspectiva de Clarice não fala sobre os conceitos que estão nas enciclopédias ou nas definições acadêmicas. Só ela e nenhuma outra autora, na minha opinião, consegue olhar para o torvelhinho da alma feminina e traduzi-la com tanto sentimento, tanta clareza. Diante de suas palavras nos sentimos nuas, desprotegidas, mas finalmente, compreendidas. Clarice Lispector não é uma escritora, é uma legista que nos abre e vasculha tudo o que tem dentro. É uma artesã que tece a teia dos nossos destinos, porque só ela entende que o destino das mulheres não é linear, mas uma grande teia, entrelaçada, cujas pontas atam e desatam, em permanente conexão e reconexão com diversos outros destinos (dos pais, dos maridos, dos filhos, das amigas…). Perto do Coração Selvagem e Joana, a sua protagonista, não saem do meu pensamento. Já reli outras obras de Clarice, para melhorar o entendimento delas com a idade, mas Perto do Coração Selvagem continua intocado. É aquela impressão dos meus 16 anos que eu quero guardar, porque ali eu entendi coisas que talvez, agora, calejada do mundo, já não seja capaz de entender.
Eu já quis ser Clarice Lispector. Porque ela era lindíssima, charmosa. Até o cigarro, que condeno, na boca de Clarice tinha outra conotação. Queria também escrever daquela forma tão visceral. Ser capaz de entender o universo feminino como ela entendia, porque escrevia sobre si mesma, porque ela era um resumo de todas as mulheres. Troquei Greta Garbo – também já quis ser Greta Garbo -, por Clarice Lispector. Greta Garbo me fascinava por dois motivos: primeiro, porque ela morreu no dia em que fiz 15 anos e isso para mim era simbólico. E em segundo lugar, pela frase dela, no auge da carreira, quando resolveu abandonar tudo, trancar-se em casa: “eu só quero que me deixem só!”. Para uma adolescente, essa frase era um lema de vida. Mas então, chegou Clarice, um ano depois, e trouxe a confusão de Joana, seu encanto e seu asco pelo mundo, para dentro da minha vida. Aposentei os dias de Greta Garbo e passei a viver em estado permanente de clarividência. Mas já briguei com ela também.
Apaixonada por Perto do Coração Selvagem, impregnando minhas redações de escola com a atmosfera de Clarice, pedi à professora outras obras dela para ler. Fui apresentada a Macabéa. A Hora da Estrela me enterneceu, me comovi com o destino daquela moça tão sem graça, tão humana. E Clarice a matou. Que raiva, meu Deus! Como ela pode fazer isso comigo? Como é que mata a coitada da Macabéa depois de ter iludido a menina com as palavras equivocadas daquela cartomante? Que pérfida essa Clarice Lispector! Ficamos de mal. Passei meses sem querer saber dela. Sem ler nada que tivesse a assinatura de Clarice Lispector. Mentira, disfarçadamente, eu lia Felicidade Clandestina. Me deleitava e vivia uma paixão secreta.
Felicidade Clandestina é um dos contos mais belos da nossa literatura. Perdi a conta das vezes em que reli. E cada leitura revela uma novidade. Clarice é assim, não perde o frescor. E os meus 16 anos ficaram para trás há um bom tempo, mas Clarice continua belíssima e eu continuo apaixonada por cada um dos seus livros. E entendi porque Macabéa precisava morrer. E me reconciliei com A Hora da Estrela.
Quando me tornei mais velha, descobri um conto de Clarice chamado Amor.
Também entendi o gesto da minha professora. Clarice tem mesmo de entrar nas nossas vidas ainda na adolescência e nos acompanhar até o dia em que não estivermos mais aqui. Porque só Clarice Lispector consegue reunir em um único texto, embora tenha escrito centenas, toda a complexidade de ser mulher.
PARA SABER MAIS:
O QUE FALAM DE CLARICE POR AÍ…
Clarise, uma vida que se conta
Autora: Nádia Battella Gotlib
Editora: Ática, SP, 1995
Clarice Lispector, a narração do indizível
Autor: vários (coletânea de artigos)
Editora: Artes e Oficios, Porto Alegre, 1998
Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector
Autora: Teresa Cristina Montero Ferreira
Editora: Rocco, Rio de Janeiro, 1999
O QUE CLARICE ESCREVEU…
Clarice Lispector é uma das nossas autoras mais produtivas. Escreveu romances, contos, livros infantojuvenis, crônicas, reuniu entrevistas no volume De Corpo Inteiro (1975).
Confira a lista com algumas de suas obras mais famosas:
Perto do Coração Selvagem – 1944
O Lustre – 1946
A Cidade Sitiada – 1949
Laços de Família – 1960
A Maçã no Escuro – 1961
A Paixão segundo G.H. -1964
A Legião Estrangeira -1964
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres – 1969
Felicidade Clandestina -1971
Água Viva – 1973
A Imitação da Rosa -1973
A Hora da Estrela -1977
Um Sopro de Vida – 1978
>>Leia o conto Amor, de Clarice Lispector. Este texto foi incluído na coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século, da Editora Objetiva – RJ, 2000.
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