Cancioneiro medieval para enaltecer a mulher

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Quem ainda lembra das aulas de literatura na escola, já deve ter ouvido falar do trovadorismo e de Paio Soares Taveirós, cavaleiro de fina estirpe português que, no século XII, inaugura o cancioneiro (poesia cantada) em nosso idioma, com a Cantiga da Ribeirinha. Deve lembrar também dos estilos que predominavam entre os trovadores: cantigas de amigo, cantigas de amor e as picantes cantigas de maldizer e escárnio, que aqui na Bahia, ainda no século XVII, eram bastante populares na voz do poeta “boca do inferno” Gregório de Mattos. Mas, o cancioneiro medieval não se limita a um punhado de nomes de poetas e datas históricas. Em pleno período de exacerbado sentimento religioso, de caça às bruxas pela Inquisição, floresce na Europa um tipo de poesia que resgata a crença pagã na divindade e no poder feminino. Por que me recordei do amor cortês medieval e das canções de amor dos trovadores e resolvi trazê-los para o blog? Primeiro, porque esses versos musicados valorizavam a figura feminina, infelizmente relegada ao papel de mero objeto sexual por letras de funks e pagodes na atualidade. Segundo, porque aqui no Brasil do século XXI, um grupo de músicos, estudiosos da cultura medieval, resgataram as trovas de amor (vejam o vídeo). O mais interessante no trabalho desses trovadores contemporâneos é que eles montam suas apresentações com versos escritos por mulheres cortesãs. Aqui, vale esclarecer que, na Idade Média, o termo cortesã se referia àquelas damas que recebiam poetas e trovadores para realizar saraus na corte. Somente numa fase mais recente da história, cortesã passa a designar um tipo de prostituta elegante (conforme definição no Aurélio). Em tempos de exaltação das mulheres-fruta e na tentativa de mostrar uma outra realidade, convido vocês a uma rápida viagem no tempo para descobrirmos a origem das cantigas de amor.

Quando a vejo reconheço-me
Nos olhos, no rosto, na cor,
Pois tremo de medo como a folha ao vento
Uma criança tem mais juízo que eu
De tal modo me sinto possuído pelo amor
E de um homem vencido desta forma
Bem poderia uma dama ter grande piedade

(Bertrand de Ventadorn, c. 1150-1180)

Misoginia x magia

No século VIII, depois que o cristianismo torna-se a religião dominante na maioria dos estados-nação da Europa, entre as camadas mais populares mantém-se a crença herdada da antiguidade de que as mulheres eram seres sobrenaturais, capazes de influenciar os eclipses lunares, mandar nas forças da natureza e controlar o amor. A igreja, por sua vez, tenta mostrar que as mulheres são tão humanas quanto os homens e mais, prega que o amor é um sentimento primitivo e inferior, desprovido de razão. A crença nas bruxas, a caça desenfreada a qualquer mulher que fizesse um chá de ervas para curar dor de cabeça, começa nessa época. O resultado do conflito entre a misoginia dos clérigos e as crendices do povo, além da matança da Inquisição, quando mais de 600 mil mulheres foram queimadas, é a violência doméstica, praticada em todas a esferas da sociedade, do camponês analfabeto ao rei Felipe II, que costumava socar o nariz da sua rainha.

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No século XII, essa cultura começa a mudar, muito provavelmente graças a Guilherme, conde de Poitiers e príncipe de uma região francesa chamada Aquitânia. Guilherme é considerado o primeiro trovador. A este conde é atribuida a introdução do amor cortês na cultura europeia. O que nós brasileiros temos com isso? Você leitor se pergunta. Se o país só foi descoberto no século XVI, finalzinho da Idade Média? Temos que, Paio Soares de Taveirós, aquele cavaleiro do início do post, lembram, era português e inaugura o trovadorismo no seu país, certamente sob influência de Guilherme ou, paralelamente a ele. Quando chegam aqui no Brasil, para nos colonizar, é essa cultura de 400 anos de trovas, cantigas de amor, poemas satíricos e sentimento religioso exacerbado que os portugueses trazem na sua bagagem.

O que é amor cortês?

Quem gosta de cinema ou de romances de cavalaria já deve ter ouvido falar das novelas arturianas, ou seja, aquelas passadas na época do mítico Rei Arthur. Também conhece, seja dos livros ou dos filmes, a trágica história de amor envolvendo o triângulo Arthur-Guinevere-Lancelot; ou ainda a lenda do casal Tristão e Isolda; ou o romance proibido de Abelardo e Heloísa. Todas essas são histórias corteses.

O amor cortês, mais que um estilo literário ou musical, é uma forma de comportamento social vigente na Idade Média. Se caracteriza pelo enaltecimento das qualidades da mulher amada, que ocupa uma posição superior a do homem. Como se desenvolve na Idade Média, na época do feudalismo, as relações corteses também são estabelecidas como em um feudo. A mulher é a susserana, a senhora, a dona do castelo; e o amante é o vassalo, aquele que se submete, que presta serviços em troca da benevolência da amada. Outra característica do amor cortês é que poucas vezes ele se concretiza, principalmente porque a dama em questão é quase sempre uma mulher mais velha e casada e o cortesão apaixonado, um homem mais jovem e solteiro, que a admira de longe e sofre por ela. Quando se realiza, o amor cortês gera relações adúlteras, pois na cabeça do homem medieval, em que os casamentos eram arranjados por motivos políticos ou financeiros, a crença predominante era de que o verdeiro amor só existia fora do casamento. Essa ideia vigora até o início do século XIX, graças aos casamentos de conveniência.

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Você sabia quê…

>>Na idade média, nem sempre as mulheres eram submissas e algumas até herdavam feudos e defendiam seus castelos contra invasões? Essas mulheres eram chamadas viragos (mulher-macho) embora fossem bastante femininas e recebessem poetas e trovadores em suas propriedades. Os feudos administrados por mulheres eram chamados feudos de roca, em referência ao instrumento usado para tecer a lã.

>>As rainhas e duquesas medievais eram responsáveis pela manutenção do salão do castelo, onde os trovadores faziam suas apresentações. O mecenato (patrocínio aos artistas) era uma iniciativa feminina no período.

>>Existiam tribunais femininos, em que diversas damas se reuniam para julgar as condutas dos seus amantes e ver se eles haviam infringido as regras do amor cortês. Uma dessas regras dizia que o amante cortês jamais podia expor a reputação da sua dama ao falatório da corte.

>>O poeta Gregório de Mattos nasceu em Salvador em 7 de abril de 1636. É considerado um dos poetas barrocos mais importantes da literatura brasileira. Apelidado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, era um ferrenho crítico social do seu tempo, apontando governantes e clérigos corruptos em seus versos.

Fontes de pesquisa:

>>As Deusas, as bruxas e a Igreja; Maria Nazaré Alvim de Barros; Rosa dos Tempos

>>Tratado do amor cortês; André Capelão; Martins Fontes

>>Artigo Amor e a elevação da condição feminina. Clique aqui e leia na íntegra

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2 pensamentos sobre “Cancioneiro medieval para enaltecer a mulher

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