Da série Migrações
Mãe é aquela história. A gente tem ela para vida toda, mesmo quando ela não está mais nesta vida. Sempre carregamos a mãe para todo lugar, principalmente, o divã do analista.
Carreguei as histórias da minha para o blog…
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“Meu marido é o meu dinheiro”
Minha mãe nasceu em 1935. Nossa diferença de idade é o motivo pelo qual tenho um livro de histórias humano, falante, risonho e com cerca de um metro e cinquenta e sete de altura, dentro de casa. As histórias que ela conta me revelam o mundo em cores que nenhum livro conseguiria criar, por mais criativo que seja seu autor. Dia desses, ela me contava que era uma moça rebelde, nos idos da década de 50, quando a boa educação – ditada pelo patriarcalismo, machismo e outros ismos da nossa sociedade – mandava que as moças fossem muito obedientes, muito recatadas, muito submissas. Como todo taurino que se preza, ainda mais uma que está bem na cúspide de Touro com Gêmeos, minha mãe pode ser um pouco de tudo, menos submissa.
Aos 19 anos, morando no interior, filha de um dono de alambique que trazia as meninas na rédea curta e soltava os meninos como bons predadores pela vizinhança (a frase preferida do meu avô era: “prendam suas novilhas, porque meus garrotes estão soltos”, daí vocês tiram o tipo de homem que ele era, fruto do seu tempo), decidiu que queria trabalhar. Discute dali, discute daqui, eu vou, você não vai…meu avô dispara essa pérola do anedotário machão do interior: “Você tem é de casar, ter filhos, cuidar do seu marido, moça direita faz assim”. Minha mãe, que apesar de pequena é aguerrida desde nova, bateu o pezinho tamanho 35 no chão e revidou: “Papai, meu marido é o meu dinheiro. Eu sou independente, não vou ficar na sombra de homem nenhum”.
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Menina revolucionária
Década de 60, depois do golpe. Cenário: Hospital das Clínicas, como na época era conhecido o Hupes (Hospital Universitário Professor Edgar Santos). Mais um dia de plantão silencioso. Uma auxiliar de enfermagem de vinte e poucos anos percorre as enfermarias, checa a temperatura dos pacientes, distribui medicação. Do térreo, vem o som de um rebuliço no refeitório. As notícias chegam de elevador. Os militares invadiram o hospital, estão caçando médicos contrários ao regime. Os funcionários, surpreendidos em pleno almoço, foram todos rendidos, estão de costas para a parede, mãos na cabeça, mãos que revistam, percorrem seus corpos, enfiam-se nos bolsos das fardas à cata de papéis proibidos. Um destacamento está a caminho da enfermaria. Entra um médico, jovem, cheio de ideias incendiárias, pede ajuda para a auxiliar de enfermagem, uma moça baixinha, de gestos suaves, fala delicada, mas com uma vontade de aço, que não dobra, não verga. Ela aponta um leito vazio “deite aí doutor”, cobre o suposto paciente dos pés à cabeça, continua seu tranquilo vai e vem pela enfermaria. O destacamento chega, o barulho de botas ressoa no corredor. “Quem é esse aí na cama”. A jovem atendente de enfermagem responde tranquilamente, “um paciente em recuperação”. Um dos soldados diz que precisa revistar a enfermaria, a atendente revida que ele pode revistar, mas não pode incomodar os doentes, que aquela ala é para doenças terminais, pacientes em estado gravíssimo e que se alguma daquelas pessoas morrer, as famílias certamente vão baixar no quartel. A voz dela não treme, o canto do olho não pisca. O soldado dá meia volta, continua sua busca por outros cantos do hospital. Barra limpa, o médico agradece. Mas ainda tem um problema, seus livros, seus papéis, nada pode ser encontrado. “Não vai ser encontrado”, diz a moça. Naquela noite, ao sair do plantão, a enfermeira leva para casa, além da bolsa, um pacote embrulhado como quem acaba de sair do supermercado. Pega o ônibus, viaja tranquila, sem medo de uma blitz. Os livros estão protegidos e assim permaneceram por anos, até que foi seguro de novo para o seu dono reavê-los.