Dever de casa

Da série Migrações

O dever de casa de uma criança pode revelar muito mais do que pede o enunciado do problema de matemática ou da questão de ciências. No ato de ensinar o dever de casa para o meu filho, descubro mais sobre o mundo do que nos quase 35 anos em que vivo sobre este planeta consumindo oxigênio…

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Via-láctea

Via-láctea

 

I – Redescobrindo o universo

Exercício de Ciências. Tarde nublada. Calor abafado no quarto. Uma letra muito redonda e bonita no caderno explica a origem do universo:

– Qual a diferença entre a teoria do Big Bang e a do estado estacionário?

Google, revistas Ciência Hoje da década de 80 (“essas aqui são do tempo em que eu estava na escola”), explicações, digressões, nos perdemos em citações, recuperamos o foco, resposta no caderno.

– Pesquisa aí o que é galáxia…

– “Aglomerado de estrelas, cometas, planetas, poeira cósmica e gases…”

– O quê é aglomerado?

– Um amontoado, várias coisas juntas…

– Ah, mais uma palavra para o meu vocabulário!

– Nossa galáxia é a via láctea. Os antigos a chamavam de “caminho de leite”

– Por quê?

– Porque, diz a lenda, que quando estava sendo amamentado, Hércules apertou o seio de sua mãe e o leite se esparramou, formando um caminho para as estrelas.

– Bonito isso, vou anotar aqui!

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Tartaruga-marinha

Tartaruga marinha

 

II – “Coitado do filhote da tartaruga”

– O que acontece com a tartaruga quando ela bota os ovos? Deixa na praia e vai embora? Assim, desse jeito!

– Sim, querido. O único bicho que leva anos e anos lambendo a cria é o ser humano. Na natureza selvagem os bichos cuidam dos filhotes um pouquinho, daí eles crescem e se viram.

– Mas a tartaruga abandona os ovos!!!!!

– Ela não abandona, ela cava o ninho, enterra. A areia da praia é quentinha, choca os ovos, os bebês tartaruga nascem e vão para o mar.

– E encontram o pai e a mãe no mar…

– Não, os machos de tartaruga quase nunca saem da água. Os bebês tartarugas crescem por conta própria, podem até encontrar as mães, mas não lembram delas.

– Se eu fosse um filhote de tartaruga eu ia brigar muito com a minha mãe se eu a encontrasse.

– Isso porque você está pensando na tartaruga com a cabeça de um menino. Se você fosse uma tartaruga, pensaria como tartaruga e acharia tudo normal, você viveria vida de tartaruga.

Suspiros, muxoxos, mais suspiros, reflexão de alguns minutos em busca de argumentos e por fim, a doçura do “eu me rendo”

– “coitado do filhote da tartaruga”!

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matematica

III – Matemática…

Cresci e enveredei pelas ciências humanas. Fiz jornalismo, vivo das palavras. Literatura é o ar que respiro. A filosofia sempre me ajuda a compreender para além dos limites ínfimos da visão. Dentro das páginas da História me sinto em casa… Mas que diabo ter de voltar a lidar com a tal da matemática!

– Pode corrigir o dever mamãe!

– Dever de quê?

– Matemática…

– Vixe filho, deixa eu ver… (traumas de infância são revividos: minha avó, na falta da palmatória, mantinha a régua do bolo ao lado da tabuada. Lembranças de finais de semana trancada no quarto, equações, triângulos isósceles… iso quem?)

– Mamãe, mamãe!!! o dever…

(sobressalto, o passado fica no seu devido lugar, lá atrás. À minha frente, expectativa e muitas contas esquisitas.)

– …o dever tá certo?

– Não faço a mínima ideia. A pouca matemática que enfiaram na minha cabeça, a custo de cascudos e riscos iminentes de nota vermelha, eu já esqueci toda. Não entendi nadinha desse dever. Se liga mais na aula e tira as dúvidas com a professora.

(um olhar crítico e avaliador, testa franzida por alguns minutos, um dar de ombros como quem diz, “pra me ensinar matemática já vi que ela não serve”…o tempo passa e eu desconfortável, me sentindo a mãe mais burra do mundo, uma ameba incapaz de fazer uma simples conta, já ensaio uma desculpa esfarrapada do tipo “sempre tirei nota boa em ciências humanas”…mas ele não me deixa falar, com a lógica infantil resolve equações muito mais profundas…)

– Já sei o que podemos fazer, mamãe!

– Com a matemática?

– Não mamãe, com a gente mesmo… Vamos jogar Uno?

– Vamos…

10 pensamentos sobre “Dever de casa

    • Oi Eunice,

      Fico lisonjeada de você ter vindo visitar o meu blog. No entanto, advirto de que a crônica “Dever de Casa” não se trata de material com referências científicas. Escrevi esse texto contando situações cotidianas e meus aprendizados enquanto mãe. Ao ensinar o dever de casa do meu filho, aprendi aquelas lições sutis que não estão nos livros e aprofundei minha conexão com ele. Não existe uma referência bibliográfica, porque é um texto subjetivo, de uma experiência pessoal. Não vejo de que forma isso pode servir para a sua monografia. Mas, caso realmente vá citar o texto, dê o crédito para o blog e a autora do texto, ok? Abs!

  1. Eu acho que as tartarugas são animais aquaticos muito incríveis pois vivem 80 anos e nem sei se eu vou viver isso tudo e ficar 8 horas debaixo da agua e é muito lindo bixus
    thaiany

  2. Pingback: Para os interessados em tartarugas marinhas « Mar de Histórias

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