Comédia de erros em um Grande Ônibus Lotado

Da série, Migrações

Certas histórias, de tão reais, parecem pura ficção.

ATO I

Noite chuvosa. Daquelas que caem pingos finos insistentes, ensopando sapatos e roupas. Daquelas que deixam pessoas com frio e senso de humor abaixo de zero na escala de felicidade. Ponto de ônibus de Salvador, nas imediações de um grande shopping center. Chega o ônibus, muito cheio, lotado, mais pessoas entram apesar de não caber mais ninguém. O motorista não pode “queimar o ponto” porque para cada parada que ele não faz, alguns reais saem do seu salário, se ele for denunciado, por exemplo, por aquele passageiro muito cansado, que deseja chegar em casa e está disposto até a ser mais uma sardinha na lata e viajar sufocado pelos vidros fechados, devido à chuva, e espremido entre outras sardinhas como ele. Entra uma senhora, aparência de cinquenta e muitos anos, cara de poucos amigos, com um guarda-chuva gigantesco, que mais parece uma lança. Busca um cantinho para se acomodar e seguir viagem, lenta viagem de mais de 50 minutos, contando com engarrafamento, sinaleiras, paradas. Encontra um espaço minúsculo e vazio ao lado de uma moça. Com jeitinho daria para se encaixar ali, livre de cotoveladas e pisadelas no pé. Mas o guarda-chuva, em riste, tal qual a lança do cavaleiro antes da batalha, espeta as costelas da moça. “Senhora, por favor, seu guarda-chuva está me machucando”. “Se não quer pegar ônibus cheio ante de táxi!”, é a resposta malcriada. Tudo bem, pensa a passageira mais jovem, ela está na sintonia errada hoje, está ensopada, chateada. Não entra nessa sintonia, segue viagem olhando as gotas de chuva nos vidros, cantarolando “Candella”, uma rumba muito gostosa do CD de Buena Vista Social Club.
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ATO II

A mais moça esquece a passageira mais velha e vice-versa. O ônibus avança, depois de vinte minutos, ainda está nas imediações do shopping center, anda centímetros no trânsito congestionado. Perto da ladeira que dá acesso ao bairro de Brotas, vaga um lugar ao lado da cadeira do cobrador. A senhora do guarda-chuva medieval ocupa aquele pedacinho de paraíso em forma de assento. Uma parada depois, entra uma mocinha, calças jeans coladas no corpo, camisetinha com a barriga de fora. A mocinha é conhecida do cobrador. O papo entre os dois engrena, ajuda a passar o tempo na viagem que se espicha muito além do tempo normal. Cansada de papear em posição tão incômoda, a amiga do cobrador decide que o encosto da cadeira onde a senhora do guarda-chuva medieval descansa os ossos de cinquenta e muitos anos é um bom lugar para sentar. Acomoda-se sobre o encosto da cadeira, começa o bate-boca. “Você está sentada na minha nuca e na minha cabeça!”. A moça papeando com o cobrador estava, papeando continuou. A passageira incomodada, mantém-se aguerridamente reclamando. Mas a amiga do cobrador parece adepta da máxima que diz que os incomodados que se mudem. Frase bem útil em tempos de egoísmo crescente na sociedade que aplaude os vilões dissimulados, porém decididos, e condena mocinhos honestos, porém hesitantes. A sociedade parece ter esquecido que a hesitação, a dúvida, o voltar atrás, o cometer erros e buscar repará-los são condições que nos tornam humanos, intrínsecas à nossa natureza imperfeita, eternamente em busca de marcar pontos positivos com a turma das esferas celestiais. A mocinha, ou amiga do cobrador, desce na parada em frente a uma igreja evangélica, onde, pelo barulho captado nos breves segundos em que o ônibus descarregou e carregou passageiros, acontecia uma sessão de exorcismo das mais animadas.
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ATO III

Livre do incômodo de ter alguém sentado sobre a cervical, a passageira do guarda-chuva se vira contra o cobrador. “Você devia ter mandando ela sair de cima de mim, onde já se viu alguém viajar com a bunda de outra pessoa na cabeça. Você devia ter mandado ela sair de cima de mim…” O cobrador, tão cansado quanto os outros passageiros, depois do dia de trabalho árduo, se defende da única forma que sabe, usando um mecanismo de defesa muito comum nos dias de hoje: a omissão. “Minha senhora, aqui nesse ônibus só tem adultos, as pessoas sabem o que podem e o que não podem fazer, eu não vou ficar dando ‘regulagem’ em ninguém. Se a senhora queria que ela saísse, mandasse ela sair, eu não tenho nada com a vida de ninguém”. A passageira mais velha sustenta o bate-boca com o trocador de ônibus. Uma grita de cá, o outro escorrega respostas não comprometedoras de lá. “Vou denunciar na empresa de ônibus”. “A senhora pode denunciar, pode dizer que fui eu quem disse que não me meto em briga de passageiro”. Ninguém percebeu que o “eu” do cobrador não tem nome ou sobrenome e portanto, para efeitos de denúncia na empresa de ônibus não vale absolutamente nada. Ringue armado, outros lutadores se apresentam para a disputa. A adolescente, aluna de uma escola particular e com uma mochila dez vezes maior que ela nas costas, toma partido do cobrador. Outras senhoras como a do guarda-chuva, defendem a colega ultrajada pelas nádegas da mocinha que a essa altura já está em casa e nem sonha que foi pivô de tamanho barraco.
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FINAL

Do fundo do coletivo, chegam novos soldados para a cruzada e trazem como armas o golpe baixo da ironia e do deboche. “Deixa pra lá ‘cobra’, ela tá reclamando porque é velha, feia e acabada, tá com inveja da outra que é nova e gostosa”. A moça que segue ouvindo o CD de Buena Vista pensa com seus botões. “Minha tia, a senhora podia ter passado a noite sem ouvir essa”. Fones protetores contra as lastimas do mundo nos ouvidos, a moça espetada pelo guarda-chuva, por uma fração de segundos em que a perversidade aflora e sufoca todo desejo de elevação espiritual, ainda pensa: “Tá vendo, seu troco por quase ter me empalado com esse guarda-chuva cafona é passar por essa humilhação”. Mas, como o lado bom das pessoas sempre se sobrepõe ao lado cruel – pelo menos nas teorias de Erasmo de Roterdã -, ela desce do ônibus, no seu ponto próximo à Ladeira dos Bandeirantes, comovida com a situação triste vivida pela senhora que estava em um dia ruim. Não consegue porém, deixar de rir do ridículo da situação que acaba de presenciar e convencida de que resultado melhor não poderia haver para a querela. “Na disputa entre a gostosona do cobrador e a tia mal-humorada, ganha quem tiver o corpo mais sarado. Nada mais justo numa sociedade que cultua a aparência e se torna cada vez mais rasteira”.

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