Carnaval não é minha festa preferida. Mas, quem vive em Salvador não pode fugir do tema, mesmo que fuja da folia. Principalmente quando uma das suas pautas anuais, como jornalista, é cobrir o Carnaval. O antropólogo baiano Roberto Albergaria, uma espécie de guru da baianidade, define o Carnaval como “a festa em que o baiano pula com a mão na cabeça, para não perder o juízo”. Minha cisma com o evento se deve ao fato de não gostar de lugares muito cheios. Prefiro as festas pequenas, em que todo mundo se conhece e em que dá para intercalar dança com um bom bate-papo. Não, queridos leitores, não é a idade chegando. Sempre gostei de eventos menos pirotécnicos. Mas, não posso negar que a história do Carnaval é interessantíssima: a origem na antiguidade, nas celebrações para Dionísio, o Entrudo português que chegou à Bahia no século XVI e mais recentemente o boom da axé music. A festa baiana está no Guiness Book, se bem que, muita coisa mais esdrúxula que o Carnaval vai parar neste livro. No entanto, como diz o ditado, “se não pode com alguma coisa, junte-se a ela”. Não pretendo pular atrás do trio, aí a culpa é do fôlego, que anda em falta comigo, mas não custa nada dividir com vocês o pouco que sei da história do Carnaval, nesses mais de dez anos cobrindo a festa…
O COMEÇO DE TUDO:
Se formos olhar a história com atenção, veremos que o Carnaval como conhecemos hoje tem muitas origens, ao mesmo tempo em que não se parece em quase nada com as antigas festas que o inspiraram. No antigo Egito, o povo já celebrava o seu “carnaval”, que não tinha esse nome, através de danças e cantorias ao redor de fogueiras. Na antiguidade, homens e mulheres celebravam a fecundidade do solo em todo início de primavera. As festas em honra da deusa mãe tinham música, muita bebida e sexo, era um regozijo geral do povo para agradar a deusa e garantir que ela traria boa colheita. Com a organização das primeiras cidades estado, os governantes perceberam que essa era também uma festa importante para manter o controle social, através da liberação do povo para divertir-se sem tabus durante um determinado período do ano. No século VII a.C, na Grécia antiga, é oficializado o culto a Dionísio e com ele, as festas dionisíacas de celebração ao vinho, ao sexo, à alegria e à vida. Com o advento do Cristianismo, mais ou menos pelo ano 590 d.C, é que a igreja se apropria do Carnaval e estabelece um calendário para o evento, que deveria ocorrer após o período de privações da Quaresma e terminar com a Quarta-feira de Cinzas, um dia para arrepender-se da liberalidade do Carnaval. E é aí que a origem do termo consolida-se: Carnaval vem do latim “carnevale” ou em outras palavras “adeus à carne”. Em Salvador, até a década de 50, era comum famílias inteiras irem à missa da Quarta-feira de Cinzas. O ato de contrição coletiva terminava com o padre marcando a testa de cada folião com uma cruz de cinzas, em alusão ao arrependimento pelos excessos cometidos durante o reinado de Momo. O soberano da folia aliás, é importado da divindade grega Momo, filho da noite e do sono, que é expulso do Olimpo por ridicularizar os outros deuses. Ou seja, é o típico rei bufão e inconsequente.
DIVERSÃO NA IDADE MÉDIA
Falar em Carnaval e Idade Média provoca instantaneamente a associação do Rei Momo com os antigos bobos da corte ou com as máscaras do Carnaval de Veneza. E está certo. Na Idade Média, a antiga festa dionisíaca grega se espalha pela Europa. Em Veneza, ela ganha contornos mais parecidos com os dias de hoje. É quando surgem as máscaras, o hábito de se fantasiar e os carros alegóricos. No século XVI, mais precisamente em 1545, o Concílio de Trento reconhece o Carnaval como festa popular e manifestação de rua, liberando as brincadeiras e folguedos por três dias específicos do ano. Com a criação do calendário gregoriano, estabelece-se que o Carnaval não pode coincidir com a Páscoa Cristã, que por sua vez, não coincide com a Pessach, a Páscoa Judaica. O Carnaval ocorre sempre no sétimo domingo antes da Páscoa e o cálculo da Páscoa, por sua vez, tem relação com o equinócio da primavera no Hemisfério Norte. Na época das nossas avós, todos esses preceitos eram muito respeitados e o Carnaval só começava de fato no domingo, durando até a meia-noite de terça-feira. Na quarta, lá iam os penitentes foliões confessar os pecados na missa de Cinzas. No século XIX, o reinado de Momo começava na quinta-feira anterior ao domingo de Carnaval. Mas a festa, com gente na rua dançando, só começava de fato no domingo. Em Salvador, desde os anos 90, o Carnaval dura sete dias. Começa na Quinta-feira do Rei Momo e só acaba no meio da tarde de Quarta-feira de Cinzas, depois do Arrastão de Carlinhos Brown, Ivete Sangalo e Timbalada.
ENTRUDO! O QUE É ISSO GAJA?
O Carnaval de rua atual tem origem no Entrudo dos portugueses. A festa lusa, iniciada nas ilhas da Madeira e Açores, foi trazida para cá durante a colonização. Entre meados do século XVI e início do século XX, antes do advento do trio elétrico e das escolas de samba se transformarem no desfile de luxo e glamour dos dias de hoje, era prática comum sair usando máscaras para pregar peças, dançar e cantar nas ruas.
Uma das brincadeiras consistia em encher bexigas com perfume para atirar nas pessoas, eram os populares limões de cheiro, que serviam até para paquerar. Jogar um limão de cheiro em alguém era uma tática de aproximação numa época em que os códigos de moral eram rígidos e as mulheres saíam cobertas de véu ou encerradas por detrás das cortinas das cadeirinhas de arruar, isso quando saíam de casa. Os mais perversos, porém, enchiam as bexigas com urina ou excrementos e a brincadeira ia parar na delegacia. A violência do Entrudo popular, praticado longe dos salões senhoriais onde os limões de cheiro ainda faziam sucesso, fez com que o governo tentasse delimitar e depois abolir a prática. A partir de 1830, o Entrudo passou a ser perseguido, mas só deixou de ocorrer de fato em meados do século XX, quando o Carnaval de rua começou a ganhar o status que tem hoje. Mas isso é tema de outra conversa…
PARA SABER MAIS:
Carnaval: seis milênios de história
Autor: Hiram Araújo
Editora: Cryphus, Rio de Janeiro, 2003
História do carnaval Carioca
Autora: Eneida de Moraes
Editora: Record, Rio de Janeiro, 1958, reedição em 1987
O livro de ouro do carnaval brasileiro
Autor: Felipe Ferreira
Editora: Ediouro, Rio de Janeiro, 2005
O país do carnaval (ficção)
Autor: Jorge Amado
Editora: Record, Rio de Janeiro, 1930 (primeiro romance de Jorge Amado)