À sombra do avô

Da Série Migrações

O_grande_Jequitibá

Jequitibá, a ‘gigante da floresta’  / Crédito da Imagem: Wikimidia

O avô de Maria Paula morreu um dia antes dela completar sete anos, causando-lhe sua primeira grande frustração. Com o passar dos anos, outras viriam. Mais intensas e até com trilha sonora. Para casos de dor de cotovelo, Édith Piaf, descoberta tardiamente no porta CDs de um ex-namorado, revelou-se grande companheira. A frustração nem se devia tanto à morte do avô. De qualquer modo ele iria morrer, porque desde bem pequena, Maria Paula ouvia as conversas em casa sobre a morte. “Todo mundo vai morrer um dia”, vaticinava a mãe. Perder um ente querido nunca foi um mistério para aquela família. A dor da perda era inevitável, vivia-se a dor. Esgotavam-se as lágrimas. A memória do morto era exaltada, às vezes de forma tão apaixonada, que feria o bom senso. A máxima de que basta morrer para virar santo era uma realidade na casa de Maria Paula, pelo menos entre os pais, que faziam questão de dizer das pessoas as suas qualidades, se a pessoa estava morta, exageravam-se os elogios, mas nunca era esquecido no fundo da memória o defeitinho que escapou à grande assepsia moral proporcionada pela grande viagem sem retorno que toda criatura vivente enfrentará um dia.

A primeira decepção entrou na vida de Maria Paula pela cozinha e tinha gosto de glacê. Escondeu-se no armário do quarto, disfarçada em carinhas de palhaços multicoloridas e recheadas com chicletes. O aniversário foi exaustivamente planejado para ser uma festa de arromba, mas ela não aconteceu porque não fica bem comemorar os vivos enquanto os mortos ainda nem esfriaram na sepultura. Maria Paula havia traído as estatísticas da cidadezinha de país do terceiro mundo onde nasceu. Ela sobreviveu aos primeiros sete anos de vida. Mas seu avô, que também desmentiu gráficos e cálculos matemáticos, vivendo até mais de 90, não resistiu a roubar da neta o gostinho de importância. Custava ter esperado mais um mês ou dois antes de embarcar no trem do tempo?

A noite fria e chuvosa era de silêncio. A exceção à ausência completa de som era o leve tilintar da corrente que prendia o cachorro no quintal. Vez por outra o animal de estimação da família se mexia e a corrente deixava escapar um lamento baixinho, quase inaudível. Na casa bem quietinha, com uma menina quietinha sentada no sofá da sala, um avô enorme, de quase um metro e noventa de altura, que mais parecia uma daquelas árvores gigantes da floresta tropical, cumpria a última etapa de um lento definhar. Deitado na cama de casal onde os pais de Maria Paula costumavam dormir antes da doença do patriarca, o avô esperava que na ronda daquela noite, o seu nome estivesse incluído no rol dos arrebanhados pela ceifadora, a dona caetana, como diz aquele escritor português de quem o avô tanto gostava.

O destino é irônico. No ano em que a neta contrariava os dados do órgão do governo para o óbito de crianças e os marqueteiros iniciavam a propaganda com vistas à reeleição – “Conseguimos reduzir a mortalidade infantil e praticamente erradicamos a pólio no país” -, o avô entrava para a lista de idosos mortos por pneumonia devido a uma onda de frio não sentida desde o final do século anterior.

Maria Paula prendeu a respiração quando tia Diva entrou na sala. Pela cara da tia, pelos olhos vermelhos e pelo fungar característico, a menina percebeu que os seus palhaços de chiclete jamais sairiam de dentro do guarda-roupas. Onde, na véspera, haviam sido guardados até o inicio da festa. Ficariam ali por longos meses, até por anos ou décadas. Um dia, remexendo as tralhas da infância, Maria Paula encontraria algum remanescente dos palhaços de chiclete e suspiraria para o seu caçula: ”Foi tia Diva quem fez para a festa do meu aniversário de sete anos. Mas naquele ano, vovô morreu e a festa foi cancelada”.

Sobraram os palhaços, mas os chicletes acabaram. Além de não pertencerem a categoria de coisas que duram décadas, eram doces demais, vermelhos demais, convidativos. Um consolo pela festa cancelada.

Tia Diva foi a primeira de uma comitiva de adultos de nariz escorrendo e olhos vermelhos a entrar na sala. A procissão sentou-se no sofá, espalhou-se pelas duas poltronas de tecido laranja, esparramou-se no tapete. O pai, a mãe, a tia, os dois irmãos mais velhos, vovó e Zefa, limpando as mãos de açúcar de confeiteiro no avental. Nenhum deles precisou abrir a boca. Maria Paula sabia.

Deixou os adultos carpindo a sua dor e relembrando qualidades do falecido e foi até o quarto, onde o avô repousava como uma grande árvore que cai no meio da mata. Se não fossem as raízes expostas, ninguém diria que vovô morreu. Maria Paula sentou-se aos pés da cama. Prestou bem atenção para ver se a camisa do avô tremia com a respiração. Chegou mais perto. Tentou ouvir o som do ronco. Silêncio. Tocou a testa fria, as mãos grandes que fabricavam casinhas de boneca.

Na cozinha, o glacê desabava do bolo. Escorria sobre a pia. Meio açúcar derretido, meio lágrimas de Zefa.

O enterro de vovô foi um acontecimento. Boêmio de carteirinha, tinha seu séquito. Desde gente que lhe devia a vida ao dinheiro do remédio para o filho asmático ou a feira da semana. E uma legião inconsolável de viúvas, todas muito discretas e sem intenção de afrontar vovó.

Discurso do padre. Discurso dos amigos. Discurso dos filhos. Outro sermão do pároco cuja igreja vovô ajudou a construir. Mais discurso dos amigos. Duas ou três viúvas inconsoláveis ensaiaram abrir a boca, mas diante do olhar de vovó, desistiram. A terra se abre e o caixão desce à sepultura. Coube ao pai de Maria Paula, primogênito e único varão, a primazia da mão de cal. As rosas choviam.

Maria Paula, até então quietinha e segura pelas mãos de tia Diva, tirou do bolso uma coisa que parecia cartolina. “Obrigada vovô, pelas casas de boneca, pelas histórias da carochinha e por roubar a minha festa de aniversário”.

Os coveiros, que não podiam ouvir o discurso em forma de pensamento da menina de sete anos, se esforçaram para evitar que a terra, apressada em engolir vovô, cobrisse depressa demais a carinha de palhaço recheada de chicletes, que sorria um pouco sinistro sobre a tampa marrom do ataúde.

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